A humildade cristã participa da sorte da cruz, a cuja sombra floresce e prospera. Para quem a cruz for loucura e escândalo, será a humildade abominação, e quem detesta a humildade sentirá necessariamente aversão à cruz. Não deve, pois, causar-nos admiração ver aumentar dia a dia o nu mero dos que consideram a humildade como coisa enigmática e até absurda, visto crescer também a olhos vistos o número dos que se afastam da cruz.
Desprezar-se a si mesmo, sentar-se de bom grado no último lugar! Que coisa mais revoltante se poderia exigir do homem de boje! O “homem moderno” faz orgulhosamente alarde do seu “Eu”. São-lhe devidos, diz-se comumente, o valor imperecedouro e a grandeza da sua personalidade, outrora ignorada, mas hoje tão posta em relevo. Importa-lhe, por conseguinte, fazer valer esta personalidade em toda a sua extensão.
Ele é o senhor de si mesmo e deseja viver segundo a sua individualidade, e quanto mais se despertar nele o “supra-homem”, tanto mais recalcitrará contra o desprezo e abatimento próprio.
A humildade como virtude passiva já não convém verdadeiramente aos tempos atuais, porque são tempos de progresso, de energias universais, de atividades assombrosas é de luta acérrima pela existência.
E infelizmente muitos que são tidos por bons cristãos deixam-se pouco a pouco infeccionar destas máximas tão opostas ao Evangelho.
Com certeza que se o progresso material constituísse neste mundo o grau supremo da virtude, estariam perdidos a humildade e o cristianismo. Quanto menos caso se fizer da moral, tanto mais livre e desregradamente pode o homem
entregar-se a toda a espécie de vícios e de excessos. Ora, que nos diz a esse respeito o cristianismo?
Desde o princípio do mundo combatem entre si duas grandes potências: o reino de Deus, a civitas Dei, como lhe chama S. Agostinho, e o reino deste mundo, civitas hujus mundi. O primeiro, cujo soberano é Cristo, submete-se humildemente a Deus e obtém a felicidade eterna; o segundo, porém, cujo príncipe é Satanás (1), rebela-se contra Deus e conduz à perdição eterna.
Um funda-se na humildade, o outro, na soberba. “A este reino de Deus que ainda hoje peregrina sobre a terra”, diz Santo Agostinho (2), “está particularmente recomendada a humildade, virtude característica de seu chefe, Cristo Jesus; o pecado da presunção, ao contrário, predomina sobretudo em seu figadal inimigo, o demônio”.
Assim o ensina a Sagrada Escritura. Este é na verdade o grande distintivo dos partidários dos dois formidáveis exércitos: uns constituem a sociedade dos homens sujeitos à vontade divina, outros formam a sociedade dos ímpios; tanto estes como aqueles têm os seus anjos, prevalecendo nos primeiros o amor de Deus e nos segundos o amor, próprio.
Os anjos bons sujeitaram-se humildemente ao Senhor; os anjos maus, ao contrário, levantaram-se orgulhosamente contra Deus, sob o estandarte de Lúcifer.
Foi num pecado de soberba que teve origem o reino de Satanás. O príncipe das trevas pretendeu ser semelhante a
Deus e colocar o seu trono ao lado do trono do Altíssimo, e como um relâmpago foi precipitado no inferno com os seus sequazes (3).
Os nossos primeiros pais caíram também por soberba (4). Deram ouvidos à sugestão da serpente: “Sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal” (5), e foram expulsos do Paraiso.
Desde então os dois grandes adversários lutam sem tréguas um contra o outro; a humildade abre a porta estreita do reino de Deus, a soberba fecha-a e vai dar ao reino deste mundo. Aos orgulhosos podem aplicar-se as palavras que dirigiu Deus pelo profeta ao soberbo rei de Babilônia: “Disseste em teu coração: subirei até no céu, sobre os astros assentarei o meu trono, e serei semelhante ao Altíssimo” (6).
Eis a razão por que o reino deste mundo, apesar de conduzir à perdição, exerce tão grande atrativo, e tantas almas envolve em suas redes. Só o humilde acha o caminho do reino de Deus, “enquanto que para o soberbo”, no dizer do sábio (7), “a humildade é uma abominação”.
Quando Jesus Cristo principiou a sua vida pública, mandou-lhe João Batista perguntar por dois de seus discípulos: “És tu o Messias?” Respondeu-lhe o divino Mestre, referindo-se ao cumprimento do vaticínio do profeta Isaías: “Aos pobres é anunciado o Evangelho, e bem-aventurado aquele que em mim se não escandalizar (8).
Palavra maravilhosa! Porventura pregou Cristo o Evangelho somente aos pobres e aos mendigos? Não; a todas as classes sem distinção, grandes e pequenos, pobres e ricos. Ele quer “que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade” (9). Os ricos, porém, rejeitaram o Evangelho.
Por “ricos” não entendemos os que possuem grandes riquezas, mas apenas os que se deixam dominar pelos sentimentos grosseiros que aquelas costumam produzir, isto é, os fartos que vãmente confiam em seus bens, neles se comprazem e com eles orgulhosamente se exaltam.
Em suas aspirações terrenas, esperam os judeus de categoria um Messias revestido de esplendor e de glória, para em seu reino alcançarem as primeiras dignidades em poder e riqueza. Por isso a sua soberba se escandalizou na pessoa e na pregação de Jesus, que só respirava pobreza e humildade, e cada vez rareavam mais entre os seus ouvintes estes ricos de sentimentos materiais.
Pelo contrário, os pobres acudiam a Ele em número sempre crescente. Por “pobres” não queremos significar os mendigos, mas os dominados por sentimentos próprios da pobreza: os humildes, os desamparados, etc. Estes, na sua simplicidade, abraçaram gostosamente o Evangelho, enquanto que os ricos rejeitaram com altivez.
A soberba dos “grandes” repeliu, pois, a Boa Nova, e a humildade dos “pequenos” recebeu-a com docilidade. Assim foi no tempo de Cristo e assim há de ser sempre. Portanto também hoje assim é.
A Humildade Cristã, por Victor Cathrein, S.J.1925.
(1) João, XII, 31; XIV, 30.
(2) De civ. Dei,. XIV; 1 3.
(3) Lucas, X , 18; Jud. 6.
(4) S. Thomaz, 2. 2 q, 163, a I.
(5) Genesis, 111, 5.
(6) Is. XIV, 1 3.
(7) Eccl., Xlll, 24.
(8) Lucas, VII, 22.
(9) 1. Tim., II, 4 .
Última atualização do artigo em 11 de janeiro de 2025 por Arsenal Católico