Retiraram as escadas logo que Jesus ficou cravado na cruz, assim todos podiam ver. A multidão conservava-se lá e observava. Os príncipes dos sacerdotes escameciam de Jesus (Lc 23, 35).
O sol escureceu, fechou os olhos para não ver escárnio tão cruel e ficou todo escuro para esconder um pouco a vergonha do Criador. O povo vendo-o pendurado na cruz começou a gritar e amaldiçoá-lo.
Pois aquele que é pendurado é um objeto de maldição (Dt 21, 23). Cristo remiu-nos da maldição da lei; fazendo-se por nós maldição (GI 3, 13).
Por ser homem pobre, a roupa do Senhor devia ser corrente. Usava, como todo judeu, uma túnica curta e sem mangas, por cima uma túnica cumprida com mangas longas e um manto sobre os ombros. Depois de os soldados crucificarem Jesus, tomaram as suas vestes e fizeram delas quatro partes. A túnica, porém, toda tecida de alto a baixo, não tinha costura (Jo 19, 23). Portanto foram quatro verdugos que receberam as vestes como pagamento; a túnica era inconsútil, sem costuras, segundo a tradição feita por Maria Santíssima. (19) Como era valiosa os soldados resolveram tirar a sorte sobre ela.
Rigorosa foi a justiça que caiu sobre Jesus, nem sequer as vestes ficaram como recordação para sua Mãe. Teve que ver as vestes sendo repartidas como forma de pagamento pela crueldade feita com ele. Cumpria-se a profecia: Repartem entre si minhas vestes, e lançam sorte sobre minha túnica (SI 21, 19).
Os soldados sentaram-se e montaram guarda (Mt 27, 36), era costume vigiar os condenados enquanto estivessem vivos. Provavelmente vigiavam com afinco, pois os sacerdotes e escribas, com medo que roubassem o corpo de Jesus, pagaram uma boa quantia.
Foram horas tortuosas. Como estaria um homem flagelado, pendurado numa cruz com os braços e pés estendidos e cravados, fazendo uma enorme força para sustentar o corpo?
A cidade estava cheia de gente, vindas de todas as partes para celebrar a Páscoa. Os que passavam o injuriavam, sacudiam a cabeça e diziam: Tu, que destróis o templo e o reconstróis em três dias, salva-te a ti mesmo! Se és Filho de Deus, desce da cruz! (Mt 27, 39-40). Cumpria-se novamente que estava escrito: Todos os que me vêem zombam de mim. Dizem meneando a cabeça (SI 2 1, 8). Fizeram-me objeto de escárnio, abanam a cabeça ao me ver (SI 108, 25).
O povo acreditou nas mentiras dos sacerdotes, por isso repetiam o que tinham ouvido e o escarneciam como um mentiroso, ficavam alegres que um enganador estivesse na cruz, pois se fosse quem realmente dizia ser, facilmente desceria da cruz. Pobre gente cega que não enxerga a luz do amor de Cristo. Que prova maior do que morrer para salvar os homens e depois de três dias ressuscitar?
Esperei em vâo quem tivesse compaixão de mim, quem me consolasse, e não encontrei (SI 68, 21). É quase inacreditável que tivessem tanto ódio e crueldade; que pudessem zombar de quem agonizava; que não apresentassem nenhum sinal de compaixão. Pelo contrário, pareciam possuídos pelo demônio.
Os sacerdotes, os escribas e os anciãos continuavam persuadindo o povo ignorante e fomentando ódio contra Jesus, e diziam: Ele salvou a outros e não pode salvar-se a si mesmo! (Mt 27, 42) É evidente que seu poder era falso e os milagres um embuste, pois agora que precisa nada realiza. Médico, cura-te a ti mesmo ( Lc 4, 23). Desça da cruz e nós acreditaremos que é o rei de Israel! Se é realmente o Filho de Deus, que Ele o salve! Assim diz a Escritura: Esperou no Senhor, pois que ele o livre, que salve, se o ama (SI 21, 9).
Como eram os sacerdotes e escribas que passavam as orientações, o povo repetia as injúrias contra o Senhor. Do mesmo modo os soldados zombavam dele. Aproximavam-se dele, ofereciam vinagre e diziam: Se és rei dos judeus, salva-te a ti mesmo ( Lc 23, 36-37) E os ladrões, crucificados com ele, também o ultrajavam ( Mt 27, 44). Um dos malfeitores, ali crucificados, blasfemava contra ele: Se és o Cristo, salva-te a ti mesmo e salva-nos a nós (Lc 23, 39).
Esta geração é uma geração perversa; pede um sinal, mas não se lhe dará outro sinal senão o sinal do profeta Jonas. Pois, como Jonas foi um sinal para os ninivitas, assim o Filho do homem o será para esta geração (Lc 11 , 29-30).
Nada escapava ao escrúpulo dos sacerdotes, repararam que a placa dizia “Rei dos judeus”. Segundo eles, Jesus não era rei, como também ser Rei dos judeus não é um crime; isso ofendia sua lei e sua justiça. Pensando que fora uma inadvertência do governador, os sumos sacerdotes dos judeus disseram a Pilatos: Não escrevas: Rei dos judeus, mas sim: Este homem disse ser o rei dos judeus. Respondeu Pilatos: O que escrevi, escrevi (Jo 19, 22). Os insensatos não reparavam que Deus se servia deles para que todos fixassem bem o título da cruz: Rei dos judeus, escrito em todas as línguas faladas do império romano. Dizei às nações: O Senhor é rei (SI 95, 10).
Talvez possa trazer surpresa que em tão pouco tempo fosse resolvida a causa de Jesus de Nazaré, e o levassem para o crucificarem. Desde que começou o processo pela manhã no Sinédrio até o cravarem na cruz, se passaram apenas seis horas. Foi maltratado e resignou-se; não abriu a boca, como um cordeiro que se conduz ao matadouro (Is 53, 7). Como não se opôs em nada, foi condenado contra toda a justiça. Certo seria dizer que desejou morrer pelos homens e que tinha pressa. Devo ser batizado num batismo; e quanto anseio até que ele se cumpra (Lc 1 2, 50).
A Paixão do Senhor, Luis de La Palma, 1624.
(19) Conserva-se em perto de Paris, na basílica de Argentuil, uma túnica que a Tradição afirma ser de Jesus. Embora a coloração, a antiguidade da peça, o tamanho, o tecido, as marcas de sangue humano e da flagelação e de ser inconsútil corroborem positivamente, ainda não se pode afirmar com certeza ser uma relíquia verdadeira.