Rev. Pe. Álvaro Calderón, FSSPX
A relação dos poderes espiritual e temporal na Igreja pode ilustrar-se mediante a analogia:
O espiritual está para o temporal na Igreja como a alma está para o corpo no homem
A analogia com a alma e o corpo
Quando São Tomás tem que explicar a intervenção do poder espiritual nos assuntos temporais, recorre à analogia da alma e do corpo. À objeção que diz: “a potestade espiritual é distinta da temporal, mas, às vezes, os prelados, que têm potestade espiritual, se intrometem nas coisas que pertencem ao poder temporal”; responde: “a potestade secular se submete à espiritual como o corpo à alma; e por isto não há juízo usurpado se um prelado espiritual se intromete nas coisas temporais com respeito àqueles assuntos nos quais a potestade secular lhe está submetida, ou que a potestade secular deixa a seu cuidado”[1].
As coisas análogas certamente não são iguais em tudo, mas todas as analogias acima consideradas não são metafóricas, senão próprias, pelo que valem naquilo que têm de mais caraterístico. Ao comparar a constituição do espiritual e do temporal na Igreja com a alma e o corpo no homem, quer-se afirmar, primeiro e principalmente, que:
- Não são duas realidades completas na sua ordem, senão dois co-princípios que constituem um todo único. Assim como o corpo e a alma não são duas substâncias que existem de modo separado, senão que são dois princípios que se complementam para que exista a única substância composta que é o homem, assim também a ordem espiritual e a temporal não são duas sociedades que possam existir de modo separado como realidades completas, senão que são dois elementos complementares da única e mesma realidade social: A Igreja.
- À objeção que diz que a Igreja e o Estado são duas sociedades perfeitas responde-se que são sociedades perfeitas no aspecto jurídico, no sentido em que ambas as potestades são supremas na sua ordem, mas ambos ordenamentos jurídicos têm por sujeitos os mesmos homens e ambos são necessários para alcançar o mesmo e único fim último sobrenatural.
- No segundo lugar, afirma-se que são princípios realmente distintos, com origem distinta e capazes de se separarem: Assim como a alma tem sua origem em Deus e o corpo nos pais, e depois de unidos poderiam separar-se, deixando a alma a sua condição de temporal e passando o corpo a cadáver, assim também o poder espiritual vem de cima e o poder temporal tem suas raízes na história pátria e poderiam separar-se, ficando no Céu a Igreja triunfante e na terra cadáveres de cidades. Mas, assim como a separação total do corpo e da alma implica a morte do homem, também a separação completa do poder espiritual de toda sociedade temporal implicaria a morte da Igreja militante, o que Cristo prometeu que não iria acontecer.
Não é fácil compreender este duplo aspecto aparentemente contraditório pelo qual se tem uma realidade única mas ao mesmo tempo uma distinção real, e só o gênio de Aristóteles pode expressá-lo com as noções de matéria e forma (potência e ato). Para compreender melhor de que modo podem constituir uma mesma coisa, temos que considerar como estes dois princípios se abraçam em mútua causalidade. Temos então que:
- Assim como a alma é forma que vivifica e move o corpo, e o corpo é matéria e instrumento da alma, o mesmo acontece com as ordens espiritual e temporal.
- E assim como a alma e o corpo constituem uma única substância e não têm fins diferentes senão que concorrem ao único fim do homem; assim também a ordem espiritual e temporal constituem um único organismo social e não têm fins diferentes senão que concorrem ao único fim da Igreja: a salvação das almas.
Se agora olhamos para trás, tudo o que temos dito indica onde está o erro: considera-se as duas ordens não como co-princípios, mas como realidades completas. Mas, como dissemos, quando o corpo perde o espírito, não fica um bruto perfeito com sensibilidade; isto é, quando a ordem política não está vivificada pelo poder espiritual da Igreja, tampouco temos uma sociedade natural, senão um cadáver de cidade.
A distinção é subordinação dos ministérios
Estabelecido o anterior, São Tomás diz de que modo Cristo, na sua sabedoria, quis distinguir os dois ministérios, espiritual e temporal: ‟A administração deste reino, a fim de não confundir as coisas terrenas e as coisas espirituais, tem sido encarregada, não aos reis terrenos senão aos sacerdotes, e principalmente ao Sumo Sacerdote, sucessor de Pedro, Vigário de Cristo, que é o Romano Pontífice, a quem tem que obedecer, como ao mesmo Jesus cristo, todos os reis do povo cristão. Pois a ele, a quem pertence o cuidado do fim último, hão de estar subordinados aqueles a quem incumbe os cuidados dos fins anteriores, e por ele hão de ser dirigidos”.
O cuidado, então, do fim último ou bem comum transcendente pertence ao poder eclesiástico; por outro lado, a busca dos bens imanentes ou fins intermédios, especialmente a justiça ou vida virtuosa da multidão, e também os bens de cultura e prosperidade, correspondem ao poder político. Agora bem, com certeza e sem dúvida possível, a subordinação de fins que aqui está suposta é per se e não per accidens. A doutrina de São Tomás acerca da subordinação das causas e especialmente a dos fins em ordem ao fim último, é muito clara e está desenvolvida em muitos lugares da suas obras. ‟ Vemos que as causas ordenam-se de dois modos, essencialmente e acidentalmente:
a) Essencialmente, quando a intenção da causa primeira faz referência ao último efeito, passando por todas as causas intermédias. Como quando o artesão move a mão, e a mão o martelo, que expande o ferro golpeado, ao que se dirige a intenção do agente.
b) Acidentalmente, quando a intenção da causa só se dirige ao efeito próximo. Está fora da intenção do primeiro agente o fato de que novamente por esse efeito se faça algo mais além do que já foi feito, assim como, quando alguém acende uma vela, está fora de sua intenção que essa vela acenda uma outra e assim sucessivamente. Diz-se que o que acontece fora da intenção acontece de modo acidental”.
O fim do poder político estaria subordinado “per accidens” ao fim transcendente se o governante procurara por si mesmo a prosperidade, cultura e virtude de seu povo, sem atender à ordem que estes bens têm com o fim último da salvação. Um rei que governa sem se importar se seu povo vai ou não ao Inferno, é como o capitão do Titanic que só procura o bom passar dos passageiros sem se importar se vai em direção ao porto ou contra o iceberg. Portanto, se os fins estão subordinados per se e essencialmente, também o estão as potestades. Todos os reis e governantes da Terra devem receber da Igreja a razão e medida de seus fins imediatos.
Conclusões:
A Igreja e a Cidade:
Deus pôs como princípio de salvação do gênero humano o mistério da união da natureza divina e humana na única pessoa do Verbo encarnado; mas, dado o caráter social da natureza humana, este mistério devia prolongar-se no mistério do Corpo Místico pela união da sociedade divina e da sociedade humana na única quasi pessoa da Igreja. Figura deste mistério foi o povo escolhido do Antigo Testamento; e o exemplar primeiro desta união das ordens sociais é a Sagrada Família, na qual a hierarquia eclesiástica – Jesus, Maria e José – é perfeitamente inversa à social – José, Maria e Jesus -; mas perfeitamente unida e em paz.
Não se pode pensar a ordem espiritual como constituindo um todo – a Igreja – que depois terá certas relações como outros todos de ordem temporal – os Estados. Como temos repetido talvez até cansar, estas duas ordens são co-princípios quasi substanciais a modo de matéria e forma do Reino de Deus na terra. Não pode haver Cidade sem Igreja nem Igreja sem Cidade.
Isto pode ver-se claramente na mesma instituição dos Sacramentos que são os princípios divinos que comunicam a vida da Cabeça a todo o Corpo Místico. Como indica São Tomás ‟a vida espiritual tem certa conformidade com a vida corporal… e em na vida corporal se perfeição alguém de dois modos: de um primeiro modo com respeito à própria pessoa; de um outro modo com respeito à comunidade da sociedade na qual se vive, posto que o homem é naturalmente animal sociável”. Assim, Nosso Senhor instituiu os cinco primeiros sacramentos em ordem à vida das pessoas individuais, enquanto que em relação à vida de comunidade instituiu o sacramento da Ordem, pelo que se estabelece a hierarquia eclesiástica, e o sacramente do Matrimônio, pelo que se santifica e se incorpora à Igreja a célula mesma de toda a ordem civil. O sacramento do Matrimônio é, portanto, o principio santificador de todo o tecido social, porque todos os poderes civis são certa continuação da pátria potestade.
A Igreja na Cidade:
A Igreja não pode alcançar convenientemente seus fins espirituais sem a cooperação dos poderes civis. É verdade que a Igreja tem a fortaleza de Cristo e é capaz de subsistir ainda no meio de reinos não cristãos. Mas a Igreja sem a Cidade é a Igreja dos mártires, porque os poderes civis não batizados pela Igreja caem inevitavelmente sob o domino de Satanás e se tornam perseguidores: “Quem não está comigo está contra mim”. E são muito poucas as almas com espírito de mártires, capazes de resistir à violência, senão física, ao menos moral das leis e costumes contrárias à lei de Cristo.
Para compreender o que dissemos não é necessário, por desgraça, imaginar os primeiros séculos de cristianismo; hoje já vivemos numa sociedade apóstata cada vez mais anticristã, e as exigências espirituais para salvar-se vão sendo cada vez maiores.
Não é necessário ter vivido muito para perceber que a grande maioria dos homens segue a lei e o costume social: se é costume ir à Missa, então se vai, e se há lei de divórcio, se divorciam. Por isso, quando a Igreja está na Cidade – como a alma no corpo – a maioria das pessoas se salva, mas quando não está, só se salvam almas de exceção.
A Cidade na Igreja:
O Estado não pode alcançar de nenhum modo seus fins se não estiver na Igreja – como a parte no todo. A Cidade sem Cristo é só um cadáver de cidade, alimento dos demônios carronheiros. Ao ter ficado a natureza humana ferida pelo pecado, os homens ficaram impossibilitados de se ordenar ao bem comum, o que só pode ser feito pela graça, e o poder político se transformou em tirania dos poderosos sobre os deveres: ‟Teu marido te dominará”. Ainda que o homem não perca toda a bondade natural e possam os reis procurar certos bens temporais, ao merecer pelo pecado ficar sob o domínio de Satanás, a carne e o mundo serão irremediavelmente instrumentalizados pelos demônios para ruina temporal e eterna do gênero humano.
Mas a ordem política ressuscitou, como Lázaro, depois de quatro dias de mil anos, quando Jesus Cristo ordenou: ‟Dai a César o que é de César”. Desde esse momento começaram a existir cidadãos sob as ordens do César que obedeciam por amor ao Reino de Deus. ‟Todos hão de estar submetidos às autoridades superiores –pede São Paulo aos romanos – pois não há autoridade senão sob Deus… É preciso submeter-se não só pelo temor do castigo, mas por consciência” e São Pedro: ‟ Por amor do Senhor, estai sujeitos a toda instituição humana… temei a Deus e honrai o imperador”
Tão bons vassalos não deixaram de obter bons senhores fundando os sólidos reinos cristãos. Mas… ai desta casa varrida e embelezada por Cristo! O demônio do paganismo voltou com outros sete espíritos piores que ele, os demônios da apostasia, e o fim da ordem social vem a ser pior que os começos.
[1] II-II, qu.60 a.6, 3a objeção
in Dominus Est