Ó Senhor, tomai a minha vontade e transformai-a na Vossa.
1 – O primeiro e mais precioso resultado da força unitiva do amor é a perfeita união da vontade do homem com a vontade de Deus. O amor, ao desenvolver-se, esvaziou de tal modo a alma de tudo o que é contrário ao querer divino e impeliu-a de tal maneira a querer e a amar só o que Deus quer e ama, que pouco a pouco a fraca vontade humana se foi conformando e unindo à divina; até que de duas vontades se fez uma só “a qual é vontade de Deus e esta vontade de Deus é também vontade da alma” (J.C. S. I, 11, 3). Em todos os seus atos deliberados a alma já não se guia pela sua vontade pessoal, tão falível e inconstante, mas guia-se e move-se unicamente pela vontade de Deus, na qual perdeu a sua, perdendo-a por amor. “O que perder a sua alma por amor de mim, achá-la-á”, declarou Jesus (Mt. 16, 25); presa de amor por Deus, a alma renunciou por Ele a todo o seu querer, quis perder nEle todos os seus desejos, todos os seus gostos, e agora a perda sofrida constitui o seu maior lucro, pois encontra a sua vontade inteiramente transformada na de Deus. Poderia esperar-se troca mais vantajosa? “O estado desta divina união – diz S. João da Cruz – consiste em ter a alma, quanto à vontade, com total transformação na vontade de Deus” (S. I, 11, 2). Total e não só em parte, não só as coisas de maior relevo, mas também nas mais pequenas e até nas mínimas, de modo que a vontade divina se torne realmente o único móbil da alma; o que faz, diz ou pensa é “em tudo e por tudo somente vontade de Deus” (ib.). Estado sublime que eleva a criatura às alturas do Criador, que do nível da vida humana a eleva ao nível da vida divina! Para lá chegar valeu a pena que a alma suportasse a amarga purificação pela qual foi “despida e espoliada já da sua primitiva pele” (J.C. N. II, 13, 11), isto é, da sua vontade imperfeita; valeu a pena renunciar a si mesma e a todas as coisas.
2 – Falando da perfeita união com a vontade de Deus, S.ta Teresa de Jesus escreveu: “Esta é a união que toda a minha vida desejei; esta é a que peço sempre a Nosso Senhor porque é a mais clara e a mais segura” (M. V. 3, 5). A Santa, que experimentara a eficácia e a doçura das graças místicas da união, pelas quais a alma “de nenhuma maneira pode duvidar que esteve em Deus e Deus nela” (ib. 1, 9), não hesita em preferir a tais delícias a perfeita união com a vontade de Deus. Com efeito só nessa união consiste a essência da santidade, pois as graças místicas são apenas um meio para lá chegar, meio preciosíssimo por ser o mais rápido, mas sempre meio e não fim, e que consiste unicamente na completa conformidade do próprio querer com o querer divino. De resto não depende de nós escolher o “atalho” das graças místicas em vez da via ordinária do esforço generoso e perseverante; depende unicamente de Deus, que é o Senhor dos Seus dons e os “dá quando quer, como quer e a quem quer, sem fazer injúria a ninguém” (ib. IV, 1, 2).
Em suma, o que importa é saber que o estado de união com Deus não é reservado a alguns privilegiados, mas está aberto a toda a alma de boa vontade, embora tenha de se contentar com percorrer a via ordinária, “a sendazinha”, como lhe chamava S.ta Teresa do Menino Jesus, ou “o caminho das carroças” como o definia S.ta Maria Bertilla. Em lugar de nos preocuparmos com o caminho, devemos procurar antes ser plenamente generosos, porque à união com Deus só chegam as almas que sabem dar-se de todo a Ele. “Olhai, filhas – escrevia S.ta Teresa de Ávila – que para isto de que tratamos [a união com Deus], Ele quer que não vos reserveis nada; pouco ou muito, tudo quer para Si, e segundo aquilo que entenderdes ter dado, maiores ou menores mercês se vos farão” (M. V, 1, 3). Quanto mais generosos formos na nossa doação, mais Deus virá ao nosso encontro com a Sua graça e nos sustentará com a Sua ação onipotente. Percorrer a via ordinária não significa, na verdade, ficar privado do auxílio divino; este poderá ser mais oculto e menos consolador que o concedido pelos favores místicos, mas nem por isso menos real e eficaz.
Colóquio – “Ó Senhor, que força tem o dom da vontade! Se o fizermos com a devida determinação, atrair-Vos-á a Vós, o Todo-Poderoso, para que Vos façais uma mesma coisa com a nossa baixeza, transformando-nos em Vós, unindo a criatura ao Criador.
“Quanto mais virdes que o dom da nossa vontade se manifesta não em palavras de cortesia, mas em obras, mais nos atraís a Vós e levantais a alma acima de si mesma e de todas as coisas terrenas, habilitando-a para receber grandes mercês, e não acabais de pagar nesta vida este dom: estimai-lo tanto que a alma já nem sabe o que Vos há de pedir porque Vós nunca Vos cansais de dar. E não contente por a terdes feito uma só coisa conVosco por a terdes unido a Vós, começais a regalar-Vos com ela, a descobrir-lhe segredos, a gozar or ela entender o muito que ganhou e conhecer algo do que tendes para lhe dar. Começais a tratá-la com tanta amizade, que não só lhe tornais a deixar a sua vontade, mas com ela lhe dais a Vossa. Já que se trata de tanta amizade, vendo Vós que a alma faz o que Vós quereis, também Vós fazeis o que ela deseja.
“Ó meu Deus, como é preciosa a união que a alma contrai conVosco, depois da vontade estar conforme com a Vossa! Oh! como é para desejar esta união! Venturosa a alma que alcançou, porque viverá nesta vida com descanso e também na outra, pois a não ser o perigo de Vos perder, Senhor, ou de ver que sois ofendido, nenhuma coisa da terra a afligirá: nem a doença, nem a pobreza, nem sequer a morte, vendo bem que Vós sabeis melhor o que fazeis do que ela o que deseja!” (T.J. Cam. 32, 1 e 12; M. V, 3, 3).
Intimidade Divina, Meditações Sobre a Vida Interior Para Todos os Dias do Ano, P. Gabriel de Sta M. Madalena O.C.D. 1952.
Última atualização do artigo em 8 de março de 2025 por Arsenal Católico