Amemos pois a Deus, porque ele nos amou primeiro a nós (I Joan. IV, 19).
Amor com amor se paga. Por conseguinte, Senhor, é meu dever amar-Vos porque Vós me quisestes amar primeiro (1).
Com quanta dor sinto agora, oh meu grande e desinteressado benfeitor, a minha pobreza e nudez!
Oh se eu me pudesse multiplicar e consagrar-Vos mil vezes o meu coração, e com ele todo o meu ser!
Mas, quão pouco há em mim que seja digno de Vós! E até esse pouco procede de Vós: por isso, quando vo-lo ofereço, não faço mais do que oferecer-Vos o que é Vosso.
E contudo satisfazeis-Vos com isso!
Porque é pois, que hesito em me oferecer a Vós, como correspondência dos Vosso dons? Recebei, Senhor, todo o meu ser, memória, entendimento e vontade; quanto tenho, quanto há em mim e quanto sou. Fostes Vós Senhor, que tudo me destes; tudo Vos restituo, e deposito nas Vossas mãos. Dai-me, Senhor, o Vosso amor e a Vossa graça, e com isso tenho de sobra; não peço mais.
E se este meu amor de gratidão Vos for agradável, dignai-Vos confirmar em mim tais sentimentos e fazer que a minha vontade esteja cada vez mais pronta para corresponder aos Vossos benefícios na medida das suas forças.
Mas a gratidão longe de se limitar aos sentimentos do coração, deve-se manifestar por obras.
Contentou-se Deus porventura, com mostrar aos homens sentimentos de benevolência? Amei-te, diz ele, com um amor eterno; por isso, atraí0te a mim (2). mas seguem-se logo as obras. Que mais podia eu ter feito à minha vinha? (3) A tal extremo levou Deus o seu amor pelo mundo, que entregou por ele o seu Filho unigênito (4).
Por isso, o meu amor deve-se mostrar por obras e sacrifícios; e quanto maior for a alegria com que estiver disposta a sacrificar tudo, tanto mais perfeita será a minha gratidão.
É por isso que o símbolo do amor é o fogo. A chama tende continuamente para se elevar; o fogo alastra por toda a parte; onde chega, aí se ateia.
Quão certo é, Senhor, que Sois como o fogo devorado! (5) Assim eu o fosse também. Aparece, chama escondida, incendeia, consome, transforma tudo em redor de ti!…
Mas ai! na minha rigidez e frialdade, apenas sinto preguiça e indiferença.
Oh que ingratidão, e que frialdade a minha! tão sensível e grata me mostro com as criaturas, e só convosco tão fria e indiferente!
Viestes trazer o fogo à terra e que pretendeis senão que ele se propague? (6) São inumeráveis, como faíscas de fogo, os benefícios que derramastes sobre a imensidade do mundo. Quantas dessas faíscas, capazes de derreter o bronze, caíram no meu coração? E o fogo não o inflamou; desfez apenas o seu duro invólucro.
Que vergonha, que negligência e que responsabilidade a minha! Cativam-nos as criaturas, e Deus nunca nos subjuga; deixamo-nos prender pelas criaturas, e nunca nos aprece que estamos longe de Deus; o amor dos homens sai quase sempre vitorioso; o de Deus nunca triunfa!
A Virgem Prudente, Pensamentos e Conselhos acomodados às Jovens Cristãs, por A. De Doss, S.J. versão de A. Cardoso, 1933.
(1) I Joan, IV, 19.
(2) Jer. XXXI, 3.
(3) Is. V, 4.
(4) Joan, III, 16.
(5) Deut. IX, 49.
(6) Luc. XII, 49.