P. – Qual é a história, após o pecado de Adão, do casamento instituído por Deus no paraíso terrestre?
R. – Não deixou de ser uma coisa sagrada, apesar da queda original, e foi durante muito tempo respeitado nas tradições da humanidade.
I. DECADÊNCIA DO CASAMENTO PRIMITIVO
P. – Não esteve exposto, no entanto, aos ataques da natureza decaída?
R. – Sim, a furiosos ataques. O homem fez de sua esposa um instrumento de voluptuosidade; multiplicou as suas uniões, tratou como escrava aquela que, nos desígnios de Deus, devia ser uma companheira; chegou mesmo a expulsar brutalmente a esposa casta que se não prestava a satisfazer os seus vergonhosos caprichos. Abusando do poder que sobre a mulher lhe fora conferido quando Deus disso a Eva: “Estarás sob o poder de teu marido, e ele te dominará” – o homem do paganismo desfigurou a obra admirável instituída por Deus no paraíso terrestre, servindo-se da poligamia, do divórcio e de torpezas sem nome.
P. Mas ao menos, o povo judeu, escolhido para dar ao mundo o Messias, não teria mantido o casamento na sua primitiva pureza?
R. – Mais do que os outros, o povo judeu respeitou o casamento. Todavia, Deus, vendo a dureza do seu coração, e por meio de exceções que deixam intacta a razão de ser da lei geral, quis suavizar-lhe o rigor da instituição primitiva.
Abusando ainda desta indulgência, os judeus imitaram muitas vezes os pagãos, e abriram larga brecha na obra de Deus.
II. – O CASAMENTO DIGNIFICADO E REPARADO
P. Arrumando assim, não deveria o casamento ser reconduzido ao seu primitivo esplendor?
R. – Sim, e essa glória estava reservada ao Salvador dos homens.
Logo no início da Sua vida pública, Jesus assiste a uma bodas, as bodas de Caná, e digna-se honrar os noivos com o Seu primeiro milagre.
P. – Jesus Cristo teria reagido diretamente contra a lamentável inconstância das uniões pagãs?
R. – Reagiu, quando, interrogado pelos fariseus a propósito do divórcio, respondeu com estas palavras famosas: “Aquilo que Deus uniu, não o separe o homem”. (S. Math., XXX, 3-6).
P. – Estas palavras de Nosso Senhor serão uma simples condenação do divórcio?
R. – Parecem ter um alcance maior. Julga-se descobrir nelas o anúncio d’uma graça que enobrecerá a instituição primitiva, elevando-a à dignidade d’um sacramento.
P. – Encontra-se-há, nas idades apostólicas, algum texto importante sobre o casamento cristão?
R. – Sim, o famoso texto de S. Paulo da sua Epístola aos Efésios.
Ei-lo aqui, na íntegra: – “As mulheres sejam sujeitas a seus maridos, como ao Senhor, porque o marido é a cabeça da Igreja; e ele mesmo é o Salvador do seu corpo. Assim como a Igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres o estejam em tudo a seus maridos.”
“Maridos, amai as vossas mulheres, como também Cristo amou a Igreja, e se entregou a si mesmo para a santificar, purificando-o no batismo da água, pela palavra da vida, para a apresentar a si mesmo, Igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem outro algum defeito semelhante, mas para que seja santa e imaculada”.
Desta sorte os maridos devem amar suas mulheres, como seus próprios corpos. O que ama a sua mulher, a si próprio se ama. Porque ninguém aborreceu jamais a sua carne, antes a nutre e a trata como também Cristo faz à Igreja, porque (nós que a formamos) somos membros do seu corpo, formados da sua carne e dos seus ossos. “Por sua causa (está escrito) deixará o homem seu pai e sua mãe, e se unirá a sua mulher, e serão dois em uma carne”.
Este sacramento é grande, digo, em Cristo e na Igreja. (Efésios, 22-32). (1)
P. – Pode concluir-se deste texto que o matrimônio é um sacramento, isto é, uma causa de graça?
R. – A maior parte dos teólogos assim o crê, e mesmo aqueles que não ousam afirmá-lo, não hesitam em dizer que a interpretação dos Padres da Igreja, motivada por este texto, bem como o ensino da tradição, provam, sem deixar dúvidas, que Jesus Cristo elevou o matrimônio à dignidade d’um sacramento.
P. – Como raciocinam os intérpretes de S. Paulo para provarem, por este texto, que o matrimônio ´´e um sacramento?
R. – Conforme S. Paulo, a união de Jesus Cristo e da sua Igreja deve ser o tipo da união do homem e da mulher. Ora a primeira não poderia ser o tipo nem a segunda a sua cópia ou realizada primeira, se numa e noutra destas uniões não houvesse uma virtude santificante.
Me, o homem amaria a mulher, como Cristo ama a Igreja, nem a mulher amaria o homem como a Igreja ama Cristo, sem uma graça que sobrenaturalizasse este amor e o tornasse mais nobre e puro.
Cristo santifica a sua Igreja dando-se a ela; o homem e a mulher devem santificar-se, dando-se um ao outro. Há, pois, segundo os intérpretes, no casamento tal como o concebe S. Paulo, discípulo de Cristo, um sinal instituído por Cristo para produzir uma graça na alma – uma virtude santificante. É, portanto um sacramento.
P. – Disse que, mesmo sem o texto de S. Paulo, o ensino unânime dos Santos Padres, eco das tradições apostólicas, provaria irrefutavelmente que o matrimônio cristão é um sacramento, fonte de graça. Pode citar-nos alguns desses textos dos Santos Padres?
R. – Com tanta mais vontade quanto é certo que esses textos, provando ser o casamento uma fonte de graças, contribuirão ainda para aumentar o vosso apreço por este sacramento. Tertuliano (no século III) escreveu no seu livro Ad uxorem: “O casamento é uma união selada com a bênção de Deus”. E acrescenta, no mesmo livro: “A graça divina penetra esta união, protege-a contra os ataques e as manchas”. (Ibid., c. VII). No IV século, santo. Ambrósio afirma que “o casamento foi santificado por Cristo”. (Carta ao Papa Siricio, nº 5). Pela mesma época, Santo Agostinho escreveu: “Nas bodas cristãs vale mais a santidade do sacramento do que a fecundidade do seio. In christianis nuptiis plus valet sanctitas sacramenti quam facunditas uteri”. (De bono conj., c. XVIII, nº 21).
P. – Tem sido admitida, no decurso da era cristã, esta doutrina do matrimônio sacramento?
R. – Sim. Ensinam-na as grandes escolas de teologia, afirmam-na os Concílios, proclamam-na as liturgias com o esplendor das suas cerimônias. no velino dos seus manuscritos, os sacramentários inscrevem em letras de ouro estas duas palavras: Sacramentum matrimonii, o sacramento do matrimônio.
III. ATAQUES DA HERESIA
P. – Houve vozes discordantes desse coro?
R. – Sim. Lutero atreveu-se a negar que Jesus Cristo houvesse elevado o casamento à ordem sobrenatural, e Calvino, seguindo-lhe as pisadas, teve o cinismo de dizer isto: “Casar-se uma pessoa, lavrar a terra ou fazer sapatos, coisas são estas tão sagradas umas como as outras”. Pelo seu lado, os legistas têm tentado rebaixar o casamento, não vendo nele mais do que um vulgar contrato.
P. – Como procedeu o santo Concílio de Trento em presença destes erros?
R. – Fulminou-os com os seus anátemas: “Se alguém disser que o matrimônio não é verdadeira e propriamente um dos sete sacramentos da lei evangélica, instituído por Cristo Nosso Senhor, mas que foi inventado na Igreja pelos homens e ele não confere a graça, anátema”. (Sess. XXIV, cân. I).
IV. MINISTROS DESTE SACRAMENTO
P. – Quais são os ministros do sacramento do matrimônio?
R. – O homem e a mulher que se casam. São eles próprios os ministros do sacramento.
P. – Então sacerdote presente à cerimônia não é o ministro do sacramento do matrimônio?
R. – Não; A sua presença, pela vontade da Igreja, é necessária para a celebração do casamento, e tão necessária que, sem ela, o compromisso tomado pelos esposos não só é ilícito, como deixa de ser válido. Mas não é menos verdade que o sacerdote não é o ministro deste augusto sacramento. (Concílio de Trento, Sess. XXIV, Decreto da reforma do matrimônio)
V. ESSÊNCIA DO SACRAMENTO
P. – A bênção nupcial, dada pelo sacerdote, não é, pois, a parte essencial do sacramento do matrimônio?
R. – Esta bênção é santa, atrai sobre os esposos graças muito particulares, e por isso todos os cristãos a devem ter em grande apreço. Mas digamo-lo mais uma vez, não é uma parte essencial do matrimônio. À essência deste sacramento consiste na doação e aceitação mútua que os noivos se fazem da sua pessoa. A doação é como que a matéria do sacramento. A aceitação, na presença do sacerdote, é como que a sua forma. Quando a forma se une à matéria, quando a doação é seguida da aceitação, está realizado o contrato. A graça penetra-os; administra-se o sacramento.
P. – A graça do sacramento do matrimônio é uma graça transitória, cuja ação cessa logo que os cônjuges deixam o altar?
R. – Não. A graça santificante acrescida na alma pelo sacramento dá direito a uma graça atual proporcionada; e essa graça exerce a sua ação benéfica na alma dos esposos sempre que eles necessitam dele, pela vida fora, para o cumprimento dos deveres do estado conjugal.
P. – Quais são os principais frutos desta graça?
R. – O Concílio de Trento resume-os admiravelmente por estas palavras: O próprio Jesus Cristo, autor e instituidor dos sacramentos, nos mereceu pela Sua Paixão a graça que aperfeiçoa o amor natural, estreita a união até a sua indissolubilidade absoluta e santifica os cônjuges. (Sess. XXIV, De Matrim.).
P. – Pode explicar-me bem estas palavras do Santo Concílio?
R. – Sim, reproduzindo as palavras do Catecismo do Concílio de Trento, intérprete autorizado do Santo Concílio: – “O efeito da graça produzida pelo sacramento do matrimônio é unir o homem e a mulher pelo laço duma caridade mútua, fixá-los numa afeição recíproca, libertá-los de todo o amor estranho e de toda e qualquer aproximação ilícita, a fim de que o casamento seja sempre e em tudo digno e o laço nupcial se mantenha imaculado.”
P. – Que conclusão devem tirar os esposos cristãos desta doutrina?
R. – Uma dupla conclusão.
Primeira: Grande apreço pelo sacramento do matrimônio que contraíram, e que, conforme diz o Catecismo do Concílio de Trento – “o torna superior a todos os casamentos realizados antes ou depois da lei de Moisés”.
Segunda: Em testemunho do seu reconhecimento para com Deus, grande fidelidade em observar as leis mais severas e rigorosas do casamento cristão, de que adiante falaremos.
EXTRATO
A Graça do sacramento aperfeiçoa o amor natural. – Desde que o Cristo o santificou, a graça aperfeiçoa o amor. Ilumina-o. Ensina-lhe que não há nada perfeito neste mundo; que a bondade infinita de Deus é o único ideal capaz de satisfazer um coração ávido de perfeição; e que, quando não possuímos tudo aquilo que quereríamos amar, forçoso é amar o que possuímos. Purifica os olhos da natureza, torna suportáveis as desgraças, comoventes as enfermidades, estimável a velhice. A graça torna o amor paciente. Fortalece-o contra o choque das faltas que pode conhecer e contra a revelação brusca daquelas que escaparam à sua penetração. A graça torna o amor justo e misericordioso. Persuade-o de bom grado de que, se temos que sofrer, também fazemos sofrer os outros, o que é mister na vida conjugal, e nela sobretudo, praticar a máxima do Apóstolo: “Suportemos mutuamente os nossos fardos.” Em vez de censurar, sugere desculpas. Muda as recriminações, em bons conselhos, sábias exortações, suaves encorajamentos, correções amáveis; leva o s corações, que enternece, a perdões fáceis. Enfim, a graça torna o amor fiel ao dever; faz ver aos esposos, o amor a uma luz cintilante que não podem turvar as imagens da fantasia, do capricho, da ilusão e da mentira; e leva-os a encontrarem na constância honra e alegrias que agradecem a Deus tão fiel Ele próprio para com aqueles que o ultrajam. (R. P. MOSANBBÉ, Conférences de Notre Dame; La saintelé du mariage).
Catecismo do Matrimônio por P. Joseph Hoppenot, S. J., Obra aprovada por 48 cardeais, arcebispos e bispos de França e Bélgica, 1928.