Com que amor devemos amar o próximo?

Pompeo Batoni, o retorno do filho pródigo [Detalhe], 1773, Domínio Público, Wikimedia Commons

Relações com o próximo

As relações gerais que nos unem com o próximo são ou de justiça, ou de caridade, e encerram por conseguinte os deveres do coração, do espírito, dos entretenimentos, das posses de cada um e da sociedade. Do coração na pureza dos afetos; do espírito na fuga dos juízos e suspeitas temerárias; dos entretenimentos para evitar as palavras injuriosas e a maledicência: dos bens, para a conveniente e bem ordenada distribuição das esmolas; e da sociedade para tornar virtuosa e amável. Toquemos rapidamente todos esses pontos.

Com que amor devemos amar o próximo

1 – É necessário amar o próximo, porque foi criado por Deus e destinado a possuí-lo; de modo que o amor de Deus e do próximo são, na frase de S. Gregório o Grande, como dois ramos que procedem do mesmo tronco e têm a mesma raiz.

2 – Devemos pois evitar em nosso coração duas espécies de amor sórdido: o amor interesseiro e o amor sensual; ambos tão opostos ao verdadeiro amor do próximo, com a virtude o é ao pecado e a sagrada Sião à infame Babilônia.

3 – É preciso evitar o amor sensível, que é aquele com que amamos o próximo por causa dos encantos do semblante, da vivacidade do espírito, dos talentos; numa palavra, pelo que lisonjeia os sentidos, a imaginação e a concupiscência.

4 – Este amor sensível conduz rapidamente ao amor sensual. O sábio João de Ávila nota que o queremos moderar-nos no amor sensível, e não passar além dos bons limites, é como se quiséssemos conservar pura a razão no meio da loucura..

5 – Este amor apresenta-se-nos primeiramente debaixo da aparência dum afeto inocente e, talvez, até virtuoso; mas depois em breve se transforma num veneno violento. É semelhante à serpente, cujas escamas são brilhantes e a língua elegante e delicada, mas que debaixo destas belas aparências tem escondido o veneno mortal. É como o raio que brilha aos olhos, mas no mesmo momento em que fuzila também fere e mata. Fugi pois da intimidade com pessoas mundanas e levianas e de sexo diferente; não tenhais relações com elas só por só, por causa do perigo que há em nossa excessiva condescendência e más inclinações.

6 – Debaixo do nome de próximo são compreendidos todos aqueles que já entraram ou podem entrar no gozo da felicidade celestial, que é a base deste amor, do qual por conseguinte são excluídos os demônios e os condenados.

7 – Os infiéis e os pecadores devem ser compreendidos neste amor do próximo, porque podem converter-se e alcançar a salvação eterna. Além disso, diz Santo Agostinho, é necessário distinguir duas coisas no infiel e no pecador: primeira, a natureza dele criada por Deus, e esta devemos amá-la; a segunda, o pecado que o homem cometeu, e este pecado devemos aborrecê-lo; por isso Davi dizia que odiava os maus com um ódio perfeito. Perfecto odio oderam illos (1). Quando teremos, pois, um ódio perfeito? Quando tivermos horror ao pecado e amarmos o pecador.

8 – É, pois, necessário amar o próximo em Deus, e este amor deve ser constante, universal e eficaz.

9 – O amor deve ser constante, porque o fim para que amamos é constante. Se o próximo vos ofendeu, não deixa por isso de ser obra de Deus, destinada a possuí-lo, e como tal não perdeu o direito de ser por vós amado. Podeis aborrecer o joio que cresce num terreno inculto, mas não o terreno mesmo, o qual se fosse bem cultivado produzia bom trigo.

10 – Todavia não está em nossa mão o deixar de sentir certa repugnância para com nossos ofensores; porém uma coisa é sentir, outra coisa é consentir: quando Deus nos manda amar os nossos inimigos e os que nos ofenderam, é a parte superior do nosso espírito e à vivacidade da nossa fé que ele dirige esse mandamento, e não ao nosso apetite sensitivo.

11 – Além disso este amor deve ser universal e portanto assemelhar-se ao orvalho benfazejo que cai igualmente sobre às rosas e sobre os espinhos; sobre os palácios dos ricos, como sobre à humilde cabana dos pobres. Se da fé excluirmos um só artigo, deixa de ser verdadeira fé; o mesmo acontece à caridade fraternal, se dela excluirmos uma só pessoa.

12 – Este amor, porém, ainda que universal, admite, enquanto aos seus graus, maior ou menor intensidade, segundo as afeições ditadas pela natureza, pela gratidão e outros motivos honestos. É por isso, diz S. Tomás, que os laços de sangue, e os que existem entre os indivíduos de um mesmo país, que receberam a mesma educação, e que têm inclinações semelhantes, tornam mais forte para com certas pessoas o amor, cujo princípio procede de Deus e nele acaba; e segundo essas relações estimam-se e amam-se mais os parentes, os benfeitores, as pessoas sábias e virtuosas, numa palavra, aqueles que estão mais próximos a nós ou a Deus.

13 – Finalmente o amor do próximo deve ser eficaz, isto é, deve socorrer quanto pode o nosso próximo em suas necessidades. O fogo que não queima, diz São Gregório, não é fogo; do mesmo modo é o amor: se ele não opera e não faz bem, quando pode, ao próximo necessitado, deixa de ser amor.

14 – Não devemos recusar os testemunhos comuns da civilidade e da caridade nem aos nossos inimigos nem aos que nos ofenderam; antes devemos estar prontos a socorrê-los de uma maneira especial, quando precisarem.

15 – Ainda que sejam proibidos o ódio interior e a excessiva repugnância contras as pessoas más e as que nos ofenderam, todavia a circunspecção algumas vezes não o é; antes é nessa ocasião o efeito de uma prudência indispensável. Há pessoas com quem se não pode viver em paz, sem que se viva longe delas. Neste caso a distância é um ato de prudência e não de inimizade. Quem há aí que não fuja dum doente empestado e contagioso? Ora, neste caso não é o ódio que nos faz fugir do doente, mas sim o medo da doença. A caridade leva-nos a amar nossos irmãos e a fazer-lhes bem, mas não a proteger os maus, nem a expor a inocência e a simplicidade dos bons às suas maldades e enganos. Sede simples como a pomba, diz Jesus Cristo, mas também sede prudentes como a serpente.

16 – Tende cuidado em que uma oculta e sutil paixão vos não apresente debaixo duma prudência razoável aquilo que talvez proceda dum secreto rancor.

Direção para Viver Cristãmente pelo Rev. Padre Quadrupani, Barnabita, 1905.

(1) Ps. CXXXVIII, 22.

Última atualização do artigo em 8 de março de 2025 por Arsenal Católico

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