Plæclare scriptum est a Platone, non solum nobis nati sumus… homines hominum causa esse generatos ut ipsi inter se alii aliis prodesse possent. CICERO, DE OFFIC. I. (1)
A verdade social é o oposto da utopia democrática.
A utopia democrática é a igualdade. A democracia sonha com um estado social que considera apenas os indivíduos, e indivíduos socialmente iguais.
Não foi isso que Deus quis. Para convencer-nos disso, basta considerar o que Ele fez.
Deus poderia ter criado cada homem como criou Adão, diretamente e somente por Ele. Assim procedeu relativamente aos anjos. E no entanto, mesmo aí Ele não quis igualdade! Fez com que cada anjo constituísse uma espécie distinta, correspondente a uma ideia particular, e que fossem realizadas essas ideias, graduando-as nos seres deles, assim como elas estavam graduadas no pensamento divino.
Formando o gênero humano uma espécie única, a igualdade teria reinado nele se todos nós tivéssemos recebido a existência diretamente das mãos do Criador. Deus tinha outros desígnios. Ele quis que recebêssemos a vida uns dos outros, e que assim fôssemos constituídos, não na liberdade e na igualdade sociais, mas na dependência de nossos pais e na hierarquia que devia nascer dessa dependência (2).
Deus criou Adão; depois tirou do corpo de Adão a carne da qual fez o corpo de Eva. Então abençoou o homem e a mulher e disse-lhes: “Sede fecundos, multiplicai-vos, povoai a terra e submetei-a”.
Deus criou assim a família; fez dela uma sociedade, e constituiu-a sobre um plano bem diverso do da igualdade social: a mulher submissa ao homem e os filhos submissos aos pais.
Encontramos, pois, nas próprias origens do gênero humano as três grandes leis sociais: a autoridade, a hierarquia e a união; a autoridade, que pertence aos autores da vida; a hierarquia, que torna o homem superior à mulher e os pais superiores aos filhos; a união, que entre si devem conservar os que são vivificados por um mesmo sangue.
Os Estados saíram dessa sociedade primeira.
“A família, diz Cícero, é o princípio da cidade e de alguma forma a semente da República. A família divide-se, mesmo permanecendo unida; os irmãos, seus filhos e os filhos destes, não tendo mais lugar na casa paterna, saem para ir fundar, como tantas colônias, novas casas. Eles formam alianças; daí as afinidades e o crescimento das famílias. Pouco a pouco as casas se multiplicam, tudo cresce, tudo se desenvolve e nasce a República” (3).
Bodin (século XVI), na sua obra Les Six Livres de la République, consagra, no livro III, o capítulo VII à demonstração de “como a origem das corporações e das comunidades veio da família”. E Savigny, no seu Traité du Droit Roman, também diz: “As famílias formam o germe do Estado”.
Tais são exatamente as origens do povo de Deus. No ponto de partida, Abraão funda uma nova família; desta família saem doze tribos e essas tribos compõem um povo.
Deu-se o mesmo com os gentios.
Fustel de Coulanges, no seu célebre livro La Cité Antique, demonstrou como em Hellas, assim como na Itália dos romanos, o Estado nasceu da casa doméstica. A fratria dos gregos (sociedade de irmãos), como a gens (4) dos romanos (sociedades de famílias saídas do mesmo tronco), não eram senão uma família mais vasta, reunida sob um mesmo chefe que, em Roma, usava o nome de pai, pater, em Atenas o nome de eupátrida, pai bom.
Na origem das civilizações assíria, egípcia e outras, encontra-se também uma família ou algumas famílias que, inicialmente, se desenvolvem elas mesmas e que vêem em seguida outras famílias virem se agrupar ao seu redor para formar a tribo, depois, aglomerando-se, as tribos formarem as nações.
A fratria entre os gregos, a gens entre os romanos, não eram, como as palavras aliás dão a entender, uma associação de famílias; era a própria família, que reunia num feixe todas as famílias brotadas do seu tronco, que tinha alcançado, através de sucessivas gerações, pela força das tradições, um desenvolvimento que dela fazia um grupo social já numeroso. O que não impedia que certo número de famílias estrangeiras viesse colocar-se sob a proteção dessas famílias principais, tornar-se clientes destas e entrar na fratria ou na gens por acessão. “Por aí se vê, diz Fustel de Coulanges, que a família dos tempos mais antigos, com o seu ramo primogênito e seus ramos mais novos, seus servidores e seus clientes, podia formar com o tempo uma sociedade muito grande”. Ela era mantida na unidade pela autoridade do chefe hereditário do ramo primogênito.
Nos primeiros tempos da civilização helênica, algumas famílias importantes dividem o país e o governo. Seus chefes usam o nome de reis. Esses reis são agricultores. Ulisses, rei de Itaque, vangloria-se de ser hábil em ceifar a erva, em traçar um sulco nos campos. Suas filhas vão quarar a roupa à beira do mar Jônico. As ligações mais íntimas ligam esses chefes aos que os rodeiam.
É de um número indefinido de sociedades dessa natureza que a raça ariana parece ter sido composta durante uma longa seqüência de séculos.
Vemos os grupos sociais se constituírem da mesma maneira nas origens de nosso mundo moderno.
A família, expandindo-se, formou entre nós a mesnada (5) assim como ela tinha formado a fratria entre os gregos e a gens entre os romanos. Os parentes agrupados em torno de seu chefe, diz Flach (6) formam o núcleo de uma corporação ampliada, a mesnada. Os textos da Idade Média, crônicas e canções de gesta, mostram-nos a mesnada acrescida do patronato e da clientela, como correspondendo exatamente à gens dos romanos”. Em seguida, Flach mostra como a mesnada, desenvolvendo-se por seu turno, produziu o feudo, família mais ampliada, cujo suserano ainda é o pai; tanto que, para designar o conjunto de pessoas reunidas sob a suserania de um chefe feudal, encontra-se freqüentemente nos textos dos séculos XII e XIII, época em que o regime feudal teve seu pleno desabrochamento, a palavra “família”. “O barão, diz Flach, é antes de tudo um chefe de família”. E o historiador cita textos nos quais o pai é expressamente considerado como semelhante ao barão, o filho ao vassalo.
“Um maior desenvolvimento da família dá origem ao barão de categoria mais elevada”. Do pequeno feudo brota o grande feudo. A aglomeração dos grandes feudos formará os reinos.
Foi assim que se formou nossa França. Tanto a língua como a História o atestam.
O conjunto de pessoas colocadas sob a autoridade do pai de família é chamado: família. A partir do século X, o conjunto de pessoas reunidas sob a autoridade do senhor, chefe da mesnada, é chamado: família. O conjunto de pessoas reunidas sob a autoridade do barão, chefe do feudo, é chamado: família. E veremos que o conjunto das famílias francesas foi governado como uma família. O território sobre o qual se exerciam essas diversas autoridades, quer se tratasse de um chefe de família, do chefe da mesnada, do barão feudal ou do rei, chama-se, uniformemente, nos documentos: pátria, o domínio do pai. “A pátria, diz Franz Funck-Brentano, foi na origem o território da família, a terra do pai. A palavra estendeu-se ao senhorio e ao reino inteiro, sendo o rei o pai do povo. O conjunto dos territórios sobre os quais se exercia a autoridade do rei chamava-se, pois, “Pátria”.
“Uma senhoria, escreve Seignobes, é um Estado em miniatura, com seu exército, seus costumes, seu ban, que é a lei do senhor, seu tribunal. A França foi, mais do que qualquer outro país, sobretudo no século X, dividida em soberanias desse gênero. Não foi feito o cálculo: ele alcançaria certamente uma dezena de milhar”.
Em 989, um desses barões feudais, aquele que encarnava, da maneira mais completa e mais poderosa, os caracteres que marcavam cada um deles, foi guindado — sob o impulso próprio do movimento que impelia a França à organização de suas forças vivas — ao pico do grupo social: Hugo Capeto tornou-se rei. A realeza proveio, através do barão feudal, da autoridade que exercia o pai de família.
Assim, em todo o lugar a civilização começou pela família. Lá e cá nascem os homens entre os quais se desenvolve e age mais fortemente o amor paternal e o desejo de se perpetuar por seus descendentes. Eles se dedicam ao trabalho com mais ardor, impõem a seus apetites um freio mais contínuo e mais sólido, governam sua família com mais autoridade, inspiram-lhe costumes mais severos, que imprimem nos hábitos que seus descendentes são levados a adquirir. Esses hábitos transmitem-se pela educação, tornam-se tradições que mantêm as novas gerações nas vias abertas pelos ancestrais. A caminhada por essa via conduz a família a uma situação cada vez mais alta; ao mesmo tempo, a união que conservam entre si todos os ramos saídos do tronco primitivo dá-lhes um poder que cresce dia a dia com o número de descendentes que se multiplicam e com as riquezas que se acumulam pelo trabalho de todos.
Nesta situação eminente, esta família é objeto de atenção das que a rodeiam. Estas pedem para se abrigar sob sua força, para aí encontrar proteção, e em troca prometem-lhe assistência. Entre elas se encontram as que se sentem estimuladas pela prosperidade que testemunham, e desejando-a para si mesmas, deixam-se governar e instruir, esforçam-se em praticar as virtudes cujo exemplo e resultado elas têm sob os olhos.
Tal é a origem histórica de todas as tribos, e a origem das nações é em tudo semelhante: as tribos se aglomeram como se aglomeraram as famílias, e sempre sob a ascendência de uma família principesca. O Contrato Social, que um belo dia faz homens estranhos parecerem-se uns aos outros e os faz ligarem-se entre si por um pacto convencional, não existiu senão na imaginação de Jean-Jacques Rousseau; e se seus discípulos tentaram em algum lugar assim se constituírem em Estado, sua sociedade fictícia não deve ter tardado em se dissolver. Nada subsiste se não é feito pela natureza e segundo suas leis. Vimos essas leis agir nas origens das civilizações grega e romana, como nas origens da civilização moderna. Os missionários e os exploradores confirmam sua existência entre os selvagens. Tanto entre estes quanto em qualquer outro lugar, não existe tribo senão onde há um começo de organização, e esta organização a tribo recebe da proeminência de uma família à qual as outras estão subordinadas.
É a hierarquia na sua primeira formação e a aristocracia no seu primeiro estado.
Entre nós, em meio às ruínas acumuladas pelas invasões dos bárbaros, não havia mais ordem, porque não havia mais autoridade. Sob a ação dos santos, famílias elevaram-se, animadas pelos sentimentos que o cristianismo começava a espalhar pelo mundo: sentimentos de abnegação pelos pequenos e pelos fracos, sentimentos de concórdia e de amor entre todos, sentimentos de reconhecimento e de fidelidade entre os protegidos. A hagiografia dessa época permite-nos assistir por toda a parte a esse espetáculo de famílias que se projetam assim sobre outras pela força de suas virtudes.
Acima de todas surge, no século X, a família de Hugo Capeto, que construiu a França pela paciência do seu gênio, pela perseverança de seu devotamento, pela continuidade de seus serviços. É necessário acrescentar: “E pela vontade e pela graça de Deus”(7). Tão logo o conde de Maistre assinalou esta expressão da Escritura: “Sou Eu que faço os reis”, não deixou de acrescentar: “Isto não é uma metáfora, mas uma lei do mundo político. Deus faz os reis ao pé da letra. Ele prepara as raças reais; Ele as amadurece no meio de uma nuvem que esconde sua origem. Elas aparecem assim coroadas de glória e de honra”.
E Blanc de Saint-Bonnet: “Quando Aquele que sonda os corações e as entranhas escolhe uma família entre todas as outras, Sua escolha é real e divina. Essa família logo comprova a escolha (ainda que lhe reste a liberdade para recolher ou dissipar seus dons), fornecendo mais legisladores, guerreiros e santos do que as famílias mais nobres, se bem que, neste aspecto, estas últimas já levem vantagem sobre as outras numa proporção prodigiosa” (8).
A obra que ela realiza atesta que a mão que a escolheu a sustenta e a guia.
“Partindo do nada, disse Taine, o Rei de França constrói um Estado compacto que (no momento em que estoura a Revolução) abriga vinte e seis milhões de habitantes e QUE É ENTÃO O MAIS PODEROSO DA EUROPA. Em todo esse tempo ele foi o chefe da defesa pública, o libertador do país contra os estrangeiros.
“Internamente, desde o século XII, com o elmo na cabeça e sempre pelos caminhos, ele é o grande justiceiro, demole as torres dos malfeitores feudais, reprime os excessos dos fortes, protege os oprimidos, abole as guerras particulares, estabelece a ordem e a paz: obra imensa que, de Luís, o Gordo, a São Luís; de Filipe, o Belo, a Carlos VII e Luís XI; de Henrique IV a Luís XIII e a Luís XIV, continua sem interrupção.
“Durante esse tempo, todas as coisas úteis executadas por ordem sua ou desenvolvidas sob seu patrocínio, estradas, portos, canais, asilos, universidades, academias, estabelecimentos de piedade, de refúgio, de educação, de ciência, de indústria e de comércio, levam sua marca e o proclamam benfeitor público” (9).
Mignet, apesar da singular indulgência que mostra na sua Histoire de la Révolution para com os homens que derrubaram a realeza, faz, de sua parte, esta observação (10):
“A França foi obra da dinastia capetíngea, que trabalhou, durante sete séculos, pelo estabelecimento desta preciosa unidade de território, de espírito, de língua, de governo. Foi do próprio centro do país que a dinastia capetíngea partiu para essa conquista de reunião. Paris, às margens do Sena, e Orleans, às margens do Loire, foram seus pontos de partida; o Oceano, os Pirineus, o Mediterrâneo, os Alpes, o Reno, seus pontos de chegada… Mas, sempre marchando em direção a seu objetivo, a unidade de território e a unidade de poder, a dinastia mostrou uma hábil moderação. Ela incorporou as províncias sem as destruir, deixando-lhes os costumes civis sobre os quais repousavam suas existências e uma parte dos privilégios de que gozavam” (11).
Quando se se refere à época do desmembramento do império de Carlos Magno, vê-se sair do tratado de Verdum três Estados de importância mais ou menos igual, formados cada um por elementos díspares, que se tornaram, com o tempo, a França, a Alemanha e a Itália. Destes três Estados, somente um chegou muito rapidamente à constituição de sua unidade; foi a França. No começo do século XIII, a França, com Filipe Augusto, está na posse de sua unidade nacional, existe como corpo de nação uno e homogêneo. Desde o fim do século XIII, um século e meio antes de Joana d’Arc, Filipe, o Belo, deu uma bela definição da idéia de pátria. As armas francesas acabavam de experimentar, no dia 11 de julho de 1302, o terrível desastre de Courtrai. No dia 29 de agosto, de Paris, dirigindo-se ao clero da França, Filipe, o Belo, pinta-lhe a situação do país, pedindo-lhe que contribua com subsídios para a defesa da pátria: “Refleti bem, diz o rei aos prelados de seu reino, que se trata das vossas conveniências, de cada um dentre vós, nas quais cada um de vós tem interesse; assim, aplicando toda a vossa afeição, todos os vossos esforços na defesa desta pátria que vos viu nascer — desta pátria pela qual a tradição venerada dos ancestrais nos ensinou que era preciso combater, preferindo o amor a ela ao amor de nossos próprios filhos — nós vos pedimos que venhais em auxílio com os mais fortes subsídios de que possais dispor…”
Izoulet, professor no Colégio de França, expôs esta concepção do amor da pátria: “O amor da pátria não é um sentimento simples e superficial, fácil de improvisar. Não é um cogumelo que cresce em uma noite. É uma planta de raízes profundas e lentas. O amor da pátria é uma complexa resultante de obscuros componentes. A pátria mergulha sua tríplice raiz nas secretas profundezas dos hábitos terrenos, das piedades domésticas e das emoções religiosas. Deus, o solo e o lar são o tríplice ingrediente desse ditame.
“Que se pode, pois, esperar do patriotismo de um povo em que muitas pessoas não pensam senão em abandonar a terra, em quebrar o lar, em renegar a Deus? Quando a tríplice raiz seca, como poderia a planta deixar de definhar e de morrer?”
Quanto à Alemanha e à Itália, oriundas, como a França, do império de Carlos Magno, foi preciso que esperassem até o fim do século XIX para realizar a unidade (e que unidade!) à qual uma e outra não cessaram de tender no curso de suas histórias tão agitadas.
De onde vem essa diferença? Do fato de que na França foi melhor seguida a lei da natureza. Foi a família capetíngea, foi a fixidez da dinastia real, fundada sobre a lei sálica, que formou e manteve a unidade nacional. Foi graças a esse princípio de hereditariedade, que em nenhuma outra parte se exerceu com tanta continuidade e regularidade, que a realeza francesa pôde adquirir, no curso dos séculos, as condições de força e de duração necessárias à realização da grande obra nacional (12).
O Espírito Familiar, no Lar, na Cidade e no Estado, Monsenhor Henri Delassus, Doutor em Teologia, 1910.
(1) Platão escreveu com muito acerto que nascemos homens não somente por termos sido gerados por homens, mas também para que possamos ser úteis uns aos outros. (N. do T.)
(2) Cada anjo forma por si mesmo uma espécie distinta dos outros. A espécie humana, partindo da unidade, decompõe-se em pessoas e recompõe-se em famílias ou em nações, pelo parentesco ou pela afinidade.
“Uma nação é um conjunto de indivíduos provindos de diferentes raças, mas unidos por liames complexos de família, cujos ancestrais historicamente agiram uns sobre os outros, submetidos às seleções comuns. Ela compreende os vivos, e mortos em maior número, e a posteridade até o fim dos séculos, porque a nação, de uma maneira necessária, tende à eternidade e à universalidade, isto é, a permanecer só e a cobrir o globo inteiro com a sua descendência.
“A nação que começa a se formar compreende raças diversas, em proporção diferente, repartidas de uma certa maneira na hierarquia social. Desses indivíduos sai pouco a pouco um grupo mais compacto. De geração em geração as descendências se conjugam, se ramificam e se conjugam ainda ao infinito. A comunidade de sangue estabelece-se em toda a massa e não há indivíduo que não seja um pouco parente de todos.
“Após quinze séculos, por exemplo, de existência da França, isto é, após quarenta e cinco gerações, o número teórico dos ancestrais de cada contemporâneo é prodigioso, e o dos parentes colaterais inconcebível. A partir da vigésima geração, isto é, a partir de 1200, o número de autores diretos de cada indivíduo elevar-se-ia a mais de dois milhões, a metade dos quais para essa vigésima geração. Para a quadragésima quinta chega-se a cerca de setenta milhões, cuja metade representa os ancestrais de quadragésimo quinto grau. Esses números impossíveis provam a prodigiosa repetição das mesmas pessoas nas diversas descendências do mesmo indivíduo, e a mais prodigiosa quantidade de famílias nas quais ele teve antecessores. E se se leva em conta os parentescos em linha colateral, para cada um dos ancestrais, os números tornam-se tão grandes que não somente não significam mais nada, como também não se pode escrevê-los!
“Ora, essa composição infinita de aparentados feita pela obra de gerações, não se estendeu muito além de certos limites no espaço. O parentesco é muito intenso entre indivíduos da mesma região, menor fora da província, e muito fraco com os estrangeiros. As barreiras políticas, cada vez mais altas até a fronteira da nação, impediram o estabelecimento de relações.
“A nação aparece assim como uma imensa família complexa, limitada por fronteiras. Os vivos são solidários com os mortos e estes com o futuro. Seguramente esses laços são infinitamente tênues, ameaçados sem cessar e rompidos pelo trabalho da reversão, mas são tão entrecruzados que a trama permanece forte, no espaço e no tempo” (Vacher de Lapouge, L’Aryen, son Rôle Social. Paris, 1899, in-8, p. 366-367).
(3) A República , Livro I, 7.
(4) Nome dado em Roma a um grupo de várias famílias descendentes de um mesmo ancestral. A gens romana assemelhava-se ao clã primitivo. Seus membros usavam o nome gentilício, que era o indício dos seus direitos políticos. Os chefes das gentes, na época primitiva, eram os patres (“pais”), membros natos do senado. As gentes cresceram, passaram a compreender milhares de pessoas e, em conseqüência dessa evolução, dissociaram-se a partir do fim da época real, permanecendo o gentilício como único indício do antigo parentesco. As velhas gentes romanas formavam o patriciado, distinguindo-se das gentes plebéias, que também chegaram a exercer importantes funções públicas. (Grande Enciclopédia Delta Larousse, ed. 1978, vol. 7, p. 3038, verbete “gens” — N. do T.).
(5) Mesnie, Magnie: casa, família, como ainda hoje se diz “a casa de França”.
(6) Les Origines de l’Ancienne France.
(7) As monarquias cristãs da Europa, diz Dom Besse, são todas obra de uma família. A França deve sua existência política à família de Hugo Capeto. Hugo e seus ancestrais haviam fornecido múltiplas provas de seu valor e de sua capacidade. Eles mereciam confiança. Sob sua proteção, as famílias gozavam da paz necessária à sua conservação e ao seu desenvolvimento. Foi concluído um pacto entre a casa dos Capetos e as casas que tinham autoridade sobre terras e famílias. Desse pacto resultou o núcleo primitivo, que, com acréscimos regulares, devia atingir os limites do grande reino de França.
Note-se bem: o pacto real não ligava a França a seus simples soberanos. A França estava unida à família de Hugo Capeto, à dinastia capetíngea; e, como garantia de união, ela deu a essa augusta dinastia o direito de usar seu nome; ela é para sempre a Casa de França.
O desenvolvimento extraordinário que sofreu o governo da França, sobretudo a partir do século XVI, e a organização da vida de Corte diminuíram a ação direta da família real sobre a França. No entanto, ela permaneceu considerável; mesmo sob Luís XIV e sob Luís XVI, a França tinha uma família à sua frente. Isto é tão verdadeiro que Napoleão não hesitou um instante em entrar nessa via. Ele carregou na sua ascensão todos os Bonapartes. Na Áustria, na Alemanha, na Bélgica, na Inglaterra, ainda em outros lugares, uma família preside os destinos da nação. Essa família é amada e respeitada como a primeira do país. Ela personifica suas tradições e suas glórias. Sua prosperidade e a do país são uma só. Ela carrega em si as esperanças do futuro. Todos sabem disso e vivem em paz.
(8) No que diz respeito à santidade, basta, para convencermo-nos disto, percorrer qualquer Vida dos Santos. Limitando-nos ao breviário, percebemos — a observação é de Blanc de Saint-Bonnet — que as famílias nobres, reunidas, produziram mais de trinta e sete por cento dos santos, e apenas as famílias reais seis, isto é, mais de vinte por cento! Mesmo no século XVIII, em que a nobreza estava tão decaída, as filhas de nossos reis eram santas e seus netos heróis.
Admitindo-se uma família nobre em cem famílias e uma família real ou principesca em duzentas mil, teríamos esta proporção: o mesmo número de famílias produziu, na nobreza, cinqüenta vezes mais santos do que no povo, e, nas casas reais, quatrocentas vezes mais do que na nobreza, ou vinte mil vezes mais do que no povo.
O que são, diante desses fatos, as declamações da democracia, mesmo cristã, sobre as virtudes do povo e os vícios dos grandes! Os néscios buscam argumento contra a instituição monárquica nas desordens de Luís XV. Eles não pensam nas seduções das quais não cessou de estar cercado, e diante das quais eles não teriam feito, eles, sem dúvida, melhor figura. Eles também não pensam na inacreditável força de virtude que foi necessária a uma família, mergulhada durante oito séculos no banho dissolvente das maiores prosperidades, para não cair no egoísmo, e para produzir ainda, no fim desse período, a santidade.
(9) Taine, L’Ancien Régime , p. 14 e 15.
(10) Essai sur la Formation Territoriale et Politique de la France.
(11) A propósito do nascimento de Filipe Augusto em 21 de abril de 1165, Luchaire notou com muita precisão a que ponto o sentimento de unidade moral se traduzia desde aquela época na pessoa do rei. Um estudante parisiense, Pierre Riga, contou a cena; ele mostrou a Casa do rei, no lugar do atual Palácio da Justiça, rodeada de palacianos e de burgueses que aguardam febrilmente o parto da rainha. É um filho! A rainha chora de alegria: a notícia voa de boca em boca; ela corre de uma extremidade a outra da França com uma rapidez surpreendente, “porque, se bem que o quarto real estivesse fechado, diz Riga, pessoas impacientes acharam um meio de olhar por uma fresta e de ver o menino”. Paris desperta na alegria; as ruas e as praças se iluminam. Trompetes soam nas esquinas dos cruzamentos; os sinos repicam à toda força nas altas torres das igrejas. Um estudante inglês, o futuro historiador Giraud de Barri, dormia profundamente quando foi acordado pelos ruídos e pelas luzes da rua.
“Pulo de minha cama, escreve ele, corro à janela e vejo duas pobres velhas que, carregando cada qual uma tocha acesa, gesticulavam e corriam como loucas. Pergunto-lhes o que há com elas:
“— Nós temos um rei que Deus nos deu, responde uma delas; um soberbo herdeiro real, pela mão do qual vosso rei, o vosso, receberá um dia opróbrio e infelicidade!…”
Luchaire acrescenta: “As populações mais afastadas de Paris já tinham o sentimento — por vago que fosse — da unidade moral do país francês; elas sentiam que faziam parte de um corpo cuja cabeça era o rei de França. A correspondência de Luís VII está repleta de testemunhos dessa solidariedade mais forte do que o liame feudal”.
(12) O fato reveste-se de um caráter providencial, que os verdadeiros historiadores não deixaram de notar. Foi Deus, com efeito, nos Seus desígnios sobre a França, que permitiu que, nessa grande linhagem capetíngea, na qual não se conta, durante mais de três séculos, um só príncipe adulterino, não faltasse jamais o herdeiro direto do trono, de sorte que se viu, sem interrupção, desde Hugo Capeto até Filipe, o Longo, o filho primogênito do rei defunto suceder regularmente seu pai.
Quando foi preciso, pela primeira vez, à falta de um herdeiro direto, impedir o acesso das mulheres ao trono, que teriam podido, casando-se, levar a coroa da França para uma família estrangeira e comprometer a unidade nacional, teve-se apenas que verificar a tradição e transformar o fato providencial em lei positiva.
Uma vez bem estabelecido o modo de sucessão, o princípio de hereditariedade funciona por si mesmo, provendo sempre o trono de um titular e mantendo na dinastia a grande tradição monárquica.
Como observou muito bem o abade de Pascal, um dos principais objetivos da missão de Joana d’Arc foi consagrar, da parte do céu, em Carlos VII, esse princípio salvador da hereditariedade real: “Gentil príncipe, eu te digo da parte do Senhor que és o verdadeiro herdeiro de França. Eu te digo que Deus tem piedade de vós, de vosso reino e de vosso povo”. (A última frase, no original francês: “Je te dis que Dieu a pitié de vous, de votre royaume et de votre peuple”).
Última atualização do artigo em 24 de janeiro de 2025 por Arsenal Católico