Da verdadeira e sólida devoção

A palavra “devoção”, do latim, corresponde a dedicação. Pessoa devota é a dedicada a Deus. Não há termo mais forte do que “dedicação” para indicar a disposição da alma a tudo fazer e sofrer pela pessoa a quem se dedica.

A dedicação às criaturas (refiro-me à legítima e autorizada por Deus), tem necessariamente limites. A dedicação a Deus não os tem, nem os pode ter. Se tiver a mínima reserva, a mais leve exceção, não será mais dedicação. A verdadeira e sólida devoção é a disposição da alma pela qual se está pronto a agir e sofrer em tudo, sem exceção nem reserva, ao bel prazer de Deus. Tal disposição é o mais excelente dom do Espírito Santo. Nunca serão demais o ardor e a constância em pedi-la; ninguém deve ufanar-se de tê-la inteira e perfeita, porque pode sempre crescer, ou em si mesma, ou em seus efeitos.

Vemos, por esta definição, ser a devoção algo de interior, de muito íntimo, visto afetar o fundo da alma e o seu ponto mais espiritual: a inteligência e a vontade. A devoção não consiste no raciocínio, nem na imaginação ou na sensibilidade. Não somos devotos, por sermos capazes de bom raciocínio a respeito das coisas de Deus, por termos grandes ideias, belas imagens dos objetos espirituais, ou porque nos enternecemos algumas vezes até as lágrimas.

Vemos ainda não ser a devoção coisa passageira, mas habitual, fixa, permanente, extensiva a todos os momentos da vida e reguladora de toda a conduta.

A devoção funda-se no princípio de que Deus, sendo a única fonte e o único autor da santidade, a criatura racional deve em tudo depender d’Ele e deixar-se inteiramente governar pelo espírito de Deus. A criatura deve sempre aderir a Deus do mais íntimo do seu ser; atenta constantemente a ouvi-Lo em seu íntimo, sempre fiel em realizar o que Ele pede a cada momento.

Não podemos ser realmente devotos, se não formos almas interiores, dados ao recolhimento, habituados a entrarmos em nós mesmos, ou antes, a nunca nos dissiparmos, a possuirmos a nossa alma em paz.

O curioso, precipitado, amigo da exterioridade, inclinado a imiscuir-se nos negócios alheios, não pode habitar em si mesmo. O espírito crítico, maldizente, irônico, arrebatado, desdenhoso, altivo, susceptível em tudo que se relacione com o amor próprio, apegado a seu parecer, indócil, teimoso ou escravo doo respeito humano, da opinião pública e, por conseguinte, fraco, inconstante, instável nos princípios e na conduta, nunca será devoto, no sentido que tenho explicado. O verdadeiro devoto é homem de oração fazendo suas delícias em se entreter com Deus, sem nunca, ou quase nunca sair da sua presença.

Para fazer oração não necessita de livro, de método, nem de esforços da inteligência, ou da vontade. Basta-lhe entrar docemente em si, onde sempre encontra Deus, a paz, por vezes saborosa, por vezes árida, mas sempre íntima e real.

Prefere a oração na qual muito dá a Deus, a oração na qual sofre, a oração que combate pouco a pouco o amor próprio sem lhe dar alimento algum.

O verdadeiro devoto não busca absolutamente a si mesmo no serviço de Deus, esforçando-se por praticar a máxima da Imitação: Em qualquer parte onde estiverdes, abnegai-vos.

O verdadeiro devoto procura cumprir perfeitamente todos os deveres do seu estado e todas as conveniências reais da sociedade, é constante nos exercícios de devoção. Contanto que não faça a sua vontade, estará sempre certo de fazer a de Deus. O verdadeiro devoto não se precipita em busca das boas obras: espera apresentar-se a ocasião. Faz tudo que de si depende para obter êxito, mas abandona este a Deus.

Prefere as boas obras humildes, às grandiosas, não se esquivando, porém, a estas quando interessam à glória de Deus e edificação do próximo.

O homem devoto não é escrupuloso nem inquieto a respeito de si mesmo, caminha com simplicidade e confiança.

Determina-se a não recusar coisa alguma a Deus, a nada conceder ao amor próprio e não a cometer faltas voluntárias; mas não se perturba, procede com retidão, não é meticuloso. Caindo em alguma falta, não se perturba: humilha-se, ergue-se e não pensa mais nisso. Não estranha suas fraquezas, suas imperfeições, nunca desanima. Sabe que nada pode, mas que Deus tudo pode. Não se fia em seus bons propósitos e suas resoluções, senão na graça e bondade de Deus.

O verdadeiro devoto tem horror ao mal, porém, maior ainda é o seu amor ao bem. É generoso, magnânimo e havendo necessidade de arriscar-se por seu Deus, não teme feridas, nem a morte. Prefere, finalmente, praticar o bem, mesmo com risco de cometer alguma imperfeição, a omiti-lo para evitar o perigo de pecar. Nada mais agradável do que a companhia de um verdadeiro devoto: é simples, franco, reto, despretensioso, meigo, afável, sincero e verdadeiro. A sua conversa é alegre, interessante, pois sabe tomar parte em divertimentos honestos. Leva a condescendência até aos últimos limites, contanto que não haja nisso pecado. Digam o que quiserem, a verdadeira devoção não é triste. Nem para o devoto, nem para os outros.

Quem servir a Deus, como deve, há de reconhecer a verdade da sentença: Servir a Deus é reinar, mesmo na ignomínia e nos sofrimentos. Os que procuram neste mundo a felicidade fora de Deus, todos sem exceção verificam a palavra de Santo Agostinho: “O coração do homem, unicamente feito para Deus, estará sempre inquieto enquanto não repousar em Deus.”

Manual das Almas Interiores, Pe Grou, 1932

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