Do Liberalismo à Apostasia: Vaticano II à Luz da Tradição

“A liberdade religiosa (…) não causa nenhum prejuízo à doutrina católica…”

“Por outro lado, ao falar desta liberdade religiosa, o Santo Concílio entende por ela, o desenvolvimento da doutrina dos últimos Soberanos Pontífices sobre os direitos invioláveis da pessoa humana…”[180].

Este preâmbulo que quer parecer tranqüilizador, precede a Declaração conciliar sobre a liberdade religiosa. Ela é apresentada como uma continuação da linha da Tradição. O que há de certo nisto? A questão se apresenta, como vimos, a partir do fato de que os Papas do século XIX condenaram, sob o nome de liberdade de consciência e de cultos, uma liberdade religiosa que parece irmã daquela do Vaticano II.

I

Vaticano II e Quanta Cura

Proposições condenadas por Pio XI em Quanta Cura

A – “A melhor condição da sociedade é aquela na qual não se reconhece o direito de reprimir com penas legais aos que violam a religião católica, salvo quando a paz pública o exige”.

B – “A liberdade de consciência e de culto é um direito próprio de todo indivíduo”.

C – “Tal direito deve ser proclamado e estar garantido em toda sociedade corretamente organizada”[181].

Proposições afirmadas em Vaticano II, Dignitatis H.

A’ – “Em matéria religiosa que ninguém seja impedido de agir segundo sua consciência, em privado ou em público, só ou associado, nos justos limites”.

B’ – “A pessoa tem o direito à liberdade religiosa. Ela consiste…” (segue em A’).

C’ – “Este direito da pessoa humana à liberdade religiosa deve ser reconhecido na ordem jurídica da sociedade como um direito civil”[182]. Paralelo assombroso! Sua análise[183] nos leva a concluir numa contradição em suas doutrinas. O próprio Pe. Congar confessa que “Dignitatis Humanae” é contrário ao Syllabys de Pio IX:

“Não se pode negar, diz ele, que a afirmação da liberdade religiosa feita pelo Concílio Vaticano II, não expressa materialmente o mesmo que o Syllabus de 1864, mas quase o contrário das proposições 16, 17 e 19 do citado documento”[184[.

O Vaticano II contraria materialmente a Pio IX, mas não formalmente. Isto é o que pretendem os defensores do texto  conciliar. E eles acrescentam, como já mostrei[185]: “a condenação da liberdade religiosa no século XIX é um erro histórico”. Os Papas a condenaram, mas de fato queriam condenar somente o indiferentismo que a inspirava: “O homem é livre para ter a religião que lhe agrade, logo tem direito à liberdade religiosa”. Com outras palavras, os Papas castigaram com demasia força, cegamente, e sem discernimento, por temer este liberalismo absoluto que ameaçava o que restava do poder pontifício temporal. O Pe. Congar retoma esta explicação e cita suas fontes:

“O Pe. John Courtney Murray que pertencia à “elite” intelectual e religiosa, demonstrou que mesmo dizendo materialmente o contrário do Syllabus (que é de 1864, e que é, como provou Roger Auber, condicionado por circunstâncias históricas precisas), a Declaração (conciliar sobre a liberdade religiosa), era a continuação do combate pelo qual, frente aos jacobinismo e aos totalitarismos, os Papas haviam lutado cada vez mais pela dignidade e liberdade da pessoa humana feita à semelhança de Deus”[186].

Ao contrário, vimos que Roger Aubert e John Courtney Murray são prisioneiros do preconceito histórico, que os faz revitalizar equivocadamente a doutrina dos Papas do século XIX[187]. Na realidade, os Papas condenaram a liberdade religiosa em si mesma, como uma liberdade absurda, ímpia, que leva os povos ao indiferentismo religioso. Esta condenação permanece e, com a autoridade do Magistério ordinário constante da Igreja (além do Magistério extraordinário – “Quanta Cura”), pesa sobre a  Declaração Conciliar.

II

A Liberdade Religiosa, Direito Fundamental?

Estaria a liberdade religiosa, como assegurou o Pe. Congar (e “Dignitatis Humanae” em seu preâmbulo), na linha dos direitos fundamentais da pessoa humana, definidos pelos últimos Papas  ante o jacobinismo e o totalitarismo do século XX?[188]. Leiamos primeiro alguns enunciados do ‘direito fundamental’ do culto de Deus:

“O homem como pessoa, tem direitos que recebe de Deus, que devem ser mantidos na comunidade, longe de tudo que os negue ou queira aboli-los ou depreciá-los” (PIN. 677).

(…) “O crente tem o direito inalienável de professar sua fé e vivê-la como ele quer que seja vivida. As leis que a afogam ou tornam difícil professar a sua prática, estão em contradição com o direito natural”[189].

“Promover o respeito ao exercício dos direitos fundamentais  da pessoa, a saber, o direito de manter e desenvolver a vida corporal, intelectual e moral; em particular, o direito a uma formação e a uma educação religiosa, o direito ao culto  público e privado de Deus e também a caritativa ação religiosa…”[190].

Objetivamente, o “culto de Deus”, só pode ser o verdadeiro culto do verdadeiro Deus, pois quando se fala de direito objetivo (o objeto concreto do direito: este culto), só pode se tratar de algo verdadeiro e bom moralmente.

“O que não responde à verdade e à lei moral, ensina Pio XII, objetivamente não tem nenhum direito à existência, nem à propaganda, nem à ação”[191].

É também o sentido do texto de Pio XI: “crentes” e “fé” se referem aos seguidores da verdadeira Religião, neste caso os católicos alemães perseguidos pelo nazismo.

Mas definitivamente, o que é que atacavam e atacam sempre, os regimes totalitários e ateus senão o fundamento mesmo de todo direito religioso? A ação anti-religiosa do regime comunista tende a ridicularizar e suprimir todo culto religioso, quer seja católico, ortodoxo ou islâmico. O que querem abolir é o direito enraizado na pessoa que responde ao dever que ela tem de honrar a Deus, abstração feita de seu exercício em tal culto, quer seja católico, ortodoxo… Este direito se chama direito subjetivo porque concerne a pessoa e não o objeto. Por exemplo, eu tenho o direito subjetivo de render culto a Deus, mas não se segue que eu tenha o direito objetivo de exercer o culto budista.

À luz desta distinção, perfeitamente clássica e elementar, compreende-se que ante o ateísmo militante, os Papas deste século, principalmente Pio XII, tenham reivindicado precisamente o direito subjetivo ao culto de Deus, direito fundamental; é o sentido que se deve dar à expressão “Direito fundamental ao culto de Deus”. Isto não impediu aos Papas reivindicar, quando preciso, explícita e concretamente, o direito subjetivo e objetivo das “almas” católicas[192].

A perspectiva do Vaticano II é totalmente diferente. O Concílio definiu um direito não somente subjetivo, mas objetivo à liberdade religiosa, um direito absolutamente concreto que todo homem teria, de ser respeitado no exercício de seu culto, qualquer que seja. Não! A liberdade religiosa do Vaticano II se coloca em posição oposta aos direitos fundamentais definidos por Pio XI e Pio XII!

Do Liberalismo à Apostasia – Mons. Marcel Lefebvre – Fonte: Dominus Est

180 “Dignitatis Humanae”, nº 1.

181 PIN. 40, Dz. Nº 1689-1690.

182 “Dignitatis Humanae nº 2.

183 Michel Martin “Courrier de Rome”, nº 157 e em particular o nº de novembro de 1985; Abbé Bernard Lucien, anexo sobre a oposição do Vaticano II com “Quanta Cura”, na “Lettre a quelques éveques”, Sociedade Santo Tomás de Aquino, Paris 1983.

184 Yves Congar, citado pelo Ab. Georges de Nantes, CRC nº 113, pág. 3. Quanto ao “Syllabus”, veja nosso cap. X. Por sua parte o Cardeal Ratzinger vê no texto “Gaudium et Spes” um “contra-Syllabus”: – “Na medida em que ele representa uma tentativa de reconciliação oficial da Igreja com o mundo como ele passou a ser depois de 1789, depois dos direitos humanos” (Os princípios da Teologia).

185 Cf. Cap. X

186 Y. Congar, DC. 1704, 789.

187 Cf. Cap. X. 188 Cf. – Ph. I – André Vincent O.P. “La Liberte Religieuse, Droit Fondamental”, Tequi, Paris 1976; “Mons. Lefebvre e o Santo Ofício, “Itinéraires” nº 233, págs. 68-81.

189 Pio XI, Encíclica “Mit Brennender Sorge” de 14 de março de 1937, DC. 837- 838, pág. 915.

190 Pio XII, Radiomensagem de 24 de dezembro de 1942.

191 Pio XII, Alocução “Ci Riesce” aos juristas, 6 de dezembro de 1953, PIN. 3041.

192 Cf. Pio XI, encíclica “Non Abbiamo” de 29 de junho de 1931

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