Venhamos agora à terceira parte da oração mental que se faz por via de transportes. Desta ninguém se pode excusar, porque pode fazer-se indo e vindo nos próprios afazeres. Dizeis-me que não tendes tempo para fazer duas ou três horas de oração: e quem é que vos fala disto? Recomendai-vos a Deus desde a manhã, protestai que não o quereis ofender, e depois ide-vos para os vossos negócios, resolvido não obstante a fazer várias elevações da vossa mente a Deus, até mesmo entre as companhias. Quem é que vos impede de lhe falar no fundo do vosso coração, já que não importa lhe faleis mental ou vocalmente? Dizei palavras curtas, mas fervorosas. Aquela que S. Francisco repetia é excelente, se bem que fosse uma palavra de contemplação, porque continuava como um rio que vai sempre correndo. Verdade é que dizer a Deus “Sois o meu tudo”, e querer alguma outra coisa que não ele, não ficaria bem, pois é mister que as palavras sejam conformes aos sentimentos do coração. Dizer, porém, a Deus : “Amo-vos “, ainda que não tenhamos um grande sentimento de amor, isso não devemos deixar de dizê-lo, porque queremos amá-lo e grande desejo temos de amá-lo .
Um bom meio para nos acostumarmos a fazer essas elevações é tomar de seguida o Padre-Nosso, escolhendo uma sentença para cada dia. Por exemplo, tomastes hoje: Padre Nosso, que estais nos céus; direis, pois, a primeira vez: Meu Pai, que estais no céu; e um quarto d’hora depois direis: Se sois meu Pai, quando é que serei perfeitamente vosso filho? Assim ireis continuando de quarto em quarto d’hora a vossa oração.
Os santos Padres que viviam no deserto, aqueles antigos e verdadeiros Religiosos, eram tão cuidadosos em fazer essas orações e elevações, que S. Jerônimo conta que, quando eles iam visitá-lo, ouvia-se um que dizia: Ó meu Deus, sois tudo o que eu desejo; e outro: Quando serei todo vosso, ó meu Deus? e outro repetia: Deus in adjutorium meu intende. Finalmente, ouvia-se uma harmonia muito agradável da diversidade das suas vozes. Dir-me-eis, porém: Se a gente pronuncia essas palavras vocalmente, porque é que lhe chamais oração mental? Porque se faz também mentalmente, e porque parte primeiramente do coração.
No Cântico dos Cânticos, diz o Esposo que sua bem-amada lhe roubou o coração
por um dos olhos e por um dos cabelos que lhe pende por cima da gola. Estas palavras são uma aljava cheia de agradabilíssimas e dulcíssimas interpretações; eis aqui uma bem amável. Quando um marido e uma mulher têm no seu lar afazeres que os obrigam a separar-se, se acaso sucede se encontrarem olham-se um pouco passando, mas é só por um dos olhos, por isto que, encontrando-se de lado, naturalmente não se pode fazê-lo com ambos. Assim, quer esse Esposo dizer: Posto que minha bem-amada esteja muito ocupada, ainda assim não deixa de olhar para mim com um olho, protestando-me por esse olhar ser toda minha. Ela roubou-me o coração por um dos cabelos, isto é, por um pensamento que desce do lado do seu coração.
Não é difícil esse exercicio, porque pode entrelaçar-se em todos os nossos afazeres e ocupações, sem absolutamente incomodá-los, dado que, ou no retiro espiritual, ou nesses transportes interiores, só se fazem pequenas e curtas diversões que absolutamente não impedem, antes servem muito ao prosseguimento daquilo que estamos fazendo. O peregrino que toma um pouco de vinho para alegrar o coração e refrescar a boca, se bem que pare um pouco para isso, não interrompe entretanto a viagem, mas toma força para mais depressa e facilmente concluí-la, só parando para melhor andar.
Por entre o dia, algumas elevações de espírito a Deus que não ocupam tempo, mas se fazem num momento. Não é preciso usar de palavras, mesmo interiores: basta transportar o coração ou descansá-lo em Nosso Senhor; basta olhar amorosamente para esse divino namorado das nossas almas, pois entre os amantes os olhos falam melhor do que a lingua.
Nenhuma companhia, nenhuma sugestão poderá impedir-vos de falar com frequência com Nosso Senhor, com seus Anjos e Santos, nem de ir amiúde por entre as ruas da Jerusalém celeste, nem de escutardes os sermões interiores de Jesus Cristo e do vosso bom Anjo, nem de comungardes todos os dias em espírito. Fazei, pois, com alegria de coração tudo isso.
Oh! como seremos felizes se chegarmos um dia ao céu! porque lá meditaremos mirando e considerando por miúdo todas as obras de Deus, e as havemos de achar boas; contemplaremos, vendo-as, todas juntas, ótimas, e nos lançaremos eternamente nele. Lá é onde eu vos desejo. Assim seja.
O Segredo da Salvação, A Lembrança da presença de Deus e as Orações jaculatórias, extraído das Obras de S. Francisco de Sales, por Fernando Millon, Missionário de S. Francisco de Sales, 1952.
Última atualização do artigo em 5 de fevereiro de 2025 por Arsenal Católico