Hereges e Heresias: A ação deletéria da política

MONTELETISMO

Como vimos na história do arianismo, a política influiu muito na duração e propagação deste erro, por terem alguns imperadores tomado o partido dos hereges e perseguido os católicos. Prova-o evidentemente a vida de Santo Atanásio de Alexandria, cinco vezes exilado.

Uma influência mais perniciosa do poder civil notamos na história das heresias do oriente no sétimo e oitavo séculos: no monoteletismo e no iconoclasmo.

Nos inícios do século sétimo os Persas combatiam o império bisantino. Tomaram a Palestina com Jerusalém (em 614), o Egito (em 619) e penetraram na Ásia Menor até a Calcedônia, chegando, portanto, até às portas de Constantinopla, a capital do império. Na Palestina, no Egito e na Síria havia muitos monofisitas e o imperador Heráclio receava que eles procurassem unir-se politicamente aos persas contra o império que era católico. Teve por isto a solicitude de estabelecer a paz entre todos os cristãos do império para, desta forma, aumentar sua força e a resistência interna e externa. Para este fim, Sérgio, patriarca de Constantinopla, propôs ao imperador uma fórmula de Fé em que se confessassem as duas naturezas de Cristo mas uma só vontade e um só modo de operar. Desta forma procurava-se agradar aos católicos, que confessavam duas naturezas de Cristo, e aos monofisistas que criam numa só.

Com raciocínios sofistas os fiéis simples, eram enganados por exemplo: Em Cristo há uma só pessoa, por conseguinte uma só vontade, de outra forma poderia haver discrepância entre duas vontades, e até a possibilidade de pecar, o que não se pode pensar de Cristo.

Sem levar em conta que a vontade pertence á natureza, e que um homem sem esta faculdade não é verdadeiro homem, e que Cristo tinha a natureza humana integral, outros bispos no oriente aceitaram a tal fórmula de Fé. Assim Ciro, que naquele tempo havia-se tornado patriarca de Alexandria. São Sofrônio, porém, monge de Jerusalém, compreendeu logo o erro da fórmula e a astúcia daqueles bispos e trabalhou, como pessoa privada, no sentido de impedir a propagação do erro. Quando, porém, foi eleito bispo de Jerusalém, em 633, viu-se na obrigação de tomar oficialmente posição a respeito da heresia. Numa reunião em Jerusalém defendeu ele a doutrina de duas vontades em Cristo, uma divina, outra humana. Escreveu neste sentido a Sérgio, Ciro e outros bispos, para afastá-los do erro.

Entretanto, Sérgio compreendendo que a posição e influência hierárquica de São Sofrônio lhe podia ser perigosa, escreveu logo ao Papa Honório I. Na carta explicava que por sua própria atitude já tinha convertido muitos monofisistas. Falsificava, porém, a doutrina de São Sofrônio, expondo-a como se tivesse ensinado que em jesus Cristo podia haver oposição entre as vontades.

O Papa precipitou-se. Sem esperar uma informação de São Sofrônio e sem investigar melhor a doutrina do próprio Sérgio, respondeu a este louvando-o por sustentar a perfeita união existente entre as duas vontades da Pessoa de Cristo. Ao mesmo tempo impôs silêncio sobre esta questão, pois a julgava mera especulação de uns homens inquietos.

São Sofrônio, porém, não podendo se calar ante o erro, foi considerado causador dos distúrbios. Sérgio, sentindo-se apoiado pelo Papa, compôs, no ano de 634, uma exposição de Fé, na qual afirmava que em vez de se falar de dois modos de operar em Cristo, antes devia-se falar de uma só vontade. O imperador Heráclio promulgou esta exposição como lei de todo o império.

No ano de 638 faleceram São Sofrônio, Sérgio e o Papa Honório. Os sucessores de São Sofrônio e Sérgio foram dois monofisistas. Em Roma seguiu a Honório, Severino e dois anos depois João IV.

Este último, num sínodo em Roma condenou a exposição de Fé de Sérgio, condenação que o Papa Teodoro repetiu depois.

O imperador Constante II (também chamado Constantino III) conformou-se com esta condenação, mas só exteriormente, pois pouco depois (648) mandava compor pelo patriarca Paulo uma nova exposição monoteletista (mono-um só, telein-querer) proibindo de falar em uma ou duas vontades em Cristo sob graves castigos.

O Papa, defensor da verdade íntegra naturalmente não podia conformar-se com tal compromisso nem calar. Foi Martinho I, que num sínodo romano, condenou solenemente a dita exposição de Fé e a todos os bispos que haviam ensinado o monoteletismo, entre os quais os patriarcas Sérgio, Ciro e Paulo.

Constante II, autoritário e cruel, mandou prender o Papa Martinho que neste tempo (653) já andava doente, e pô-lo em ferros, condenando-o como rebelde. Só a pedido do patriarca Paulo é que não o condenou ao esquartejamento. Exilou-o, porém, para Cherson, onde o Papa morreu pouco depois (655). Outros mártires selaram também com seu sangue a verdadeira Fé. São Máximo e mais dois discípulos, por exemplo, foram flagelados e, depois de lhes terem cortado as línguas, desterrados.

Mais tarde, felizmente, o imperador Constantino IV, o Pogonato, desejando a paz religiosa em seus domínios, entrou em negociações com o papa Agatão. Este enviou seus legados a Constantinopla onde nos anos de 680-81, numa reunião dos principais bispos do oriente, foi aceita unanimemente a declaração ou fórmula de Fé de Agatão, segundo a doutrina católica. Os bispos que não quiseram se conformar com a decisão desde concílio ecumênico, foram depostos e a paz voltou pouco a pouco.

Como Honório I não houvesse defendido a verdade como era seu sagrado dever, mas tivesse se precipitado e agido sem informações seguras, o concílio de Constantinopla o condenou também, não por erro na doutrina, mas por desleixo na disciplina e no cuidado pastoral.

Quando a Religião se torna para os políticos apenas um instrumento de poder ou de união, ou quando a doutrina não é considerada uma expressão da verdade mas de combinações momentâneas, o resultado será sempre este; o erro, a heresia…

ICONOCLASMO

Em nenhuma questão religiosa o absolutismo totalitário dos imperadores bisantinos (de Constantinopla) revelou-se tão evidente como na questão da veneração das santas imagens. Já desde muito, os imperadores com sua autoridade administrativa e política pretenderam decidir problemas teológicos, como no caso das duas vontades de Nosso Senhor: uma de natureza humana e outra divina.

Pois no oitavo e nono séculos, sem levar em conta a autoridade dos Papas e bispos, os imperadores proibiram a veneração e até o uso das imagens de Nosso Senhor e dos santos. E por terem sido quebradas muitas imagens durante as lutas religiosas, os que aceitaram como certo o decreto e a doutrina imperiais são chamados iconoclastas e esse erro iconoclasmo (isto é: quebra de imagens).

Como sabemos, Deus tinha proibido aos judeus venerá-lo a Ele mesmo sob qualquer imagem. Mas, não tinha interdito qualquer imagem religiosa, pois Ele mesmo mandou Moisés fazer dois querubins sobre a arca da aliança, e mais tarde a serpente de bronze. Mas os judeus, exagerando como em tantas outras coisas, a prescrição divina, proibiram simplesmente qualquer imagem. Por isso, no oriente, onde os judeus eram numerosos, os cristãos nos primeiros séculos não possuíam imagens; as quais no ocidente foram admitidas bem cedo. Entretanto já antes do século oitavo também no oriente o uso de santas imagens se tornara mais comum. Aí, no século sétimo surgiram os maometanos, um imenso perigo para o império bisantino. Já em 637, estes tinham tomado Jerusalém. Os maometanos, como é conhecido, não toleravam imagens no seu culto. Para unir interiormente o império e torná-lo mais forte e resistente contra os inimigos, os imperadores atiraram-se a proibir as santas imagens afim de conquistar desta forma a simpatia e colaboração dos judeus dentro do império.

Primeiro Período

Em 726 foi Leão III Isáurico (714-40) quem, por decreto imperial, proibiu o culto e o uso das imagens, até de Nosso Senhor. Por conseguinte, foram destruídas pelos soldados muitas imagens. O povo, porém, mostrou-se bem revoltado com tal barbaridade, e os monges resistiram fortemente. O patriarca de Constantinopla, São Germano, não assinou o decreto imperial e, em 730, coagido, renunciou a sua sede. Dos teólogos, foi mormente São João Damasceno, monge em Jerusalém, chamado primeiro e último teólogo do oriente, que, nos seus escritos, defendeu o uso e culto das imagens. O imperador, irado por tal resistência perseguiu sobretudo os monges; a São João Damasceno não podia castigar por ser este súdito dos árabes. O Papa Gregório II condenou os iconoclastas e Gregório III, os excomungou. Para tomar vingança, o imperador enviou uma frota a qual porém, naufragou; todavia roubou muitos bens eclesiásticos no sul da Itália.

Constantino V, Coprônimo, (741-75) foi mais cruel do que seu pai. Num sínodo constrangeu os bispos a condenarem as imagens e anatematizarem novamente a São Germano e São João Damasceno. Então levou a efeito uma cruel perseguição contra os monges: interdisse-lhes o hábito religioso, expulsou-os dos mosteiros, mandou-lhes casarem-se, e obrigou até os leigos, por juramento, a perseguirem os monges. O que, portanto, vemos em nossos dias, no passado já foi muito praticado.

De muitas igrejas tiraram-se as imagens, e perderam-se também muitas relíquias de santos que foram queimadas. – O Papa Estêvão III, em 769, condenou novamente os iconoclastas.

Leão V, Cházaro (775-80) mostrou-se mais calmo. É verdade que não revogou as leis, mas também não foi exigente na sua observância. Os monges podiam voltar aos conventos. Quando, porém, chegou a saber que a imperatriz Irene e alguns oficiais do exército veneravam as imagens, irritou-se, desterrou sua mulher e depôs os oficiais. Depois da sua morte, Irene voltou e tomou as rédeas do governo por seu filho menor Constantino VI, Porfirogenato (780-97). Ela concedeu logo liberdade religiosa e em 787 convocou os bispos para o segundo concílio de Nicéia. Neste, mais de 330 bispos defenderam e declararam legítimo e em si bom o culto das imagens e relíquias dos santos. Os bispos que revogaram o seu erro, podiam ficar no seu lugar e na sua autoridade. Depois deste concílio, por alguns anos, houve paz religiosa na igreja oriental.

Segundo Período

Ao início do século nono o imperador Miguel Rangabe foi muito infeliz numa guerra movida contra os búlgaros e maometanos. Muitos sacerdotes e até bispos, que mesmo depois do concílio de Nicéia haviam ficado interiormente agarrados ao erro iconoclasta, culpavam desta miséria o culto das imagens. Sendo destronado o imperador, Leão V, Armeno, (813-820) assumiu o governo. Leão V era um bom soldado e depressa venceu os inimigos. Mas por motivos políticos seguiu o exemplo de seus antecessores e renovou as antigas leis contra a veneração das imagens.

O patriarca Nicéforo de Constantinopla, opôs-lhe forte resistência e soube refutar com profunda erudição as objeções levantadas pelos adversários contra a liceidade deste culto. também São Teodoro, monge do mosteiro de Estudion, em Constantinopla, falava publicamente em prol da veneração das imagens e confortava os fiéis na Fé. O imperador irado por tal oposição, coagiu o patriarca a abdicar a sede e o desterrou. O seu sucessor, Teodoro, que não era nem ordenado sacerdote, e era cunhado do imperador, prestou-se às manobras políticas feitas na doutrina. Condescendeu em tudo e revogou os decretos do concílio de Nicéia. Tendo o apoio destes falsos pastores, desfecharam as autoridades civis uma violenta e cruel perseguição contra os fiéis, principalmente contra São Teodoro. Chegaram até aos nossos dias as maravilhosas cartas deste herói da Fé, escritas da prisão aos monges fiéis á verdade. Elas mostram o seu espírito forte, de inquebrantável fidelidade, que mesmo no meio dos sofrimentos, castigos corporais e traições, conservava um entusiasmo pela Fé, igual ao dos primeiros mártires da Igreja.

Leão V foi trucidado e Miguel II, Balbo, seu sucessor (820-829), agiu mais brandamente. Permitiu até que Nicéforo e São Teodoro voltassem a Constantinopla. Desejava muito a paz. Porém, obstinadamente negou-se a restituir a Nicéforo a sede patriarcal, restituição que o Papa exigiu.

Tirânico e cruel foi o sucessor de Miguel II, o imperador Teófilo (829-842). Reavivou a perseguição com toda severidade. Muitos mártires confessaram com o sangue a verdadeira crença.

Antes de morrer o imperador fez a imperatriz Teodora jurar que nunca permitiria o culto das imagens. Ela assumiu realmente o governo, em nome de seu filho Miguel III que tinha apenas 3 anos. Por causa de seu juramente não teve coragem de pôr logo em vigor os decretos do concílio de Nicéia, para restituir as imagens à veneração dos fiéis. Aconselhada, porém, pelos monges, propôs ao patriarca João Hilila, um iconoclasta, que ou abjurasse de suas ideias falsas ou abdicasse a sede. Ele abdicou, e Metódio, seu sucessor no patriarcado, num sínodo reunido em 842, renovou as definições de Nicéia. Todos os bispos, também os que antes se mostravam iconoclastas, conformavam-se com estas definições. E a paz foi restabelecida. Para celebrar esta data, introduziu-se a festa da Ortodoxia, ainda hoje celebrada na igreja oriental.

Esta dura luta que a igreja teve de sustentar, luta causada em grande parte pelo interesse puramente político de adaptar a doutrina aos gostos dos homens, abalou profundamente a igreja oriental. Não tanto sua doutrina, mas principalmente o sentimento de unidade perdeu-se com a mesquinharia de politicagens regionais. A catolicidade da Igreja não foi mais compreendida. Isto explicara também outros acontecimentos ulteriores.

Quando a “espada” domina na teologia, não pode florescer a liberdade religiosa. E é a liberdade dos filhos de Deus a única que não conhece as limitações materiais de fronteiras entre os povos, línguas ou Estados.

Hereges e Heresias, Frei Mariano Diexhans O.F.M., 1ª Edição, 1946.

Este texto foi útil para você? Compartilhe!

Deixe um comentário