Hereges e Heresias: A reforma à vista

O século XIV surgiu trazendo uma série de calamidades para a Igreja. As causas principais destas desgraças foram, sem dúvidas, as contínuas lutas contra o poder político, encarnado nos imperadores e principalmente nos reis da França, absolutistas e arbitrários, como se mostrou, por exemplo, Felipe o Belo na sua oposição a Bonifácio VIII.

Para cúmulo, os Papas que neste tempo, foram todos franceses, ficaram sob direta influência dos reis da França durante o “cativeiro babilônico” de Avinhão (1309-76). Tudo isto causou muitas desordens, tanto na vida religiosa como na disciplina e organização da Igreja.

Havia realmente a necessidade de reformar a muitos, também do clero e das ordens religiosas. E houve diversas tentativas de reforma. Mas como sempre, os que em vez de dirigirem sua reforma pelo amor e pelo respeito á Igreja deixaram-se levar pelo orgulho, em vez de reformá-la, isto é, voltarem á sua verdadeira forma, rejeitaram-na; ou, como se diz, junto com a água suja do banho, jogaram fora também a criança.

WICLEF

Pelos fins do século XIV, o professor da universidade de Oxford, Wiclef (1320-1384) vendo que por causa da riqueza do alto clero, nasciam os abusos na Igreja, começou a pregar que a Igreja devia ser completamente pobre, como nos primeiros tempos, e que o governo civil faria muito bem em confiscar todos os bens eclesiásticos e sustentar o clero por uma verba anual. Vendo-se combatido exatamente pelos religiosos mendicantes, que não tinham bens, Wiclef disse que pedir esmolas era simonia. Quando no ano de 1378 o cisma dilacerava a cristandade ocidental, Wiclef, em vez de defender o Papa legítimo, rejeitou o Papado chamando-o de instituição anticristã. Afirmou depois que a excomunhão não fazia nada e que a Igreja só se compunha dos predestinados para a vida eterna. Desta afirmação seus adeptos na Boêmia concluíram logicamente mas sobre base falsíssima, que o valor dos sacramentos dependia em cada caso da predestinação e do estado da graça do ministro. Para Wiclef só a Sagrada Escritura tinha autoridade absoluta e independente e o valor da Tradição era por ele negado. Explicou que na Sagrada Eucaristia o pão e o vinho não se mudavam substancialmente em corpo e sangue de Cristo, mas continuavam a existir junto destes. A confissão foi taxada de mera instituição eclesiástica, o celibato do clero foi apodado por ele de imoral e pernicioso. E tendo entrado assim no regime das negações, declarou-se também contra a veneração dos santos, das santas relíquias e imagens dos santos, condenou as romarias, as missas pelas almas do purgatório e negou até a existência deste. Como se vê, Lutero e os outros reformadores do século 16 não usaram de muita imaginação, reeditaram apenas os erros de um passado próximo.

Já em 1378 Gregório XI tinha condenado 18 teses de Wiclef como errôneas. A côrte real de Inglaterra, porém, protegia Wiclef de tal forma que até a sua morte, ele pôde escrever seus livros, folhetos e panfletos contra a Igreja. Quando, mais tarde, o governo inglês abriu os olhos e quis impedir a propagação da nefasta doutrina, esta já se tinha espalhado, principalmente na Boêmia, onde encontrou terreno fértil e bem preparado por Hus.

HUS

Na Boêmia, diversos sacerdotes já haviam tentado fazer uma reforma guardando a verdadeira Fé e respeito devidos à Igreja de Cristo, João de Hus, porém, professor da universidade de Praga, preferiu seguir as pegadas de Wiclef, aceitando quase tudo o que aquele fazia. Só a respeito da Eucaristia é que conservou a doutrina católica da Transubstanciação. As ideias de Hus movimentaram muita gente. Mas este movimento tomou um aspecto politico, por causa das antigas rivalidades existentes entre os alemães e os tchecos, na Boêmia. Famílias nobres viam na causa de Hus uma questão de honra política, e o protegiam. E quando rei Wenzel favoreceu o partido tcheco, a influência de Hus cresceu ainda mais. O imperador Sigismundo tentou todos os meios para apaziguar os ânimos e por um termo à luta. Para este fim garantiu a Hus uma viagem segura para o concílio de Constança (1414-18), onde este pretendia justificar a sua doutrina o que, porém, não conseguiu. Os padres do concílio acharam nos seus escritos 30 teses reprováveis, e como Hus recusasse obstinadamente revogar os seus erros, segundo as leis em vigor, foi entregue ao poder civil e condenado à morte de fogo.

Na Boêmia, seus amigos e adeptos sentiram a sua condenação como uma afronta infligida à honra nacional. Insurgiram-se então contra os sacerdotes que não pensavam nem pregavam como Hus e os expulsaram do país. A rainha Sofia, de quem Hus fôra confessor, tomou franco partido pela doutrina dele e considerou-o um mártir. Quase a totalidade da nobreza da Boêmia e da Morávia fizeram aliança para defender a liberdade de pregar e confessar a doutrina hussita, e exigiam como sinal a comunhão também do cálice. O rei da Boêmia, Wenzel, não se opôs seriamente a tal movimento, se bem que não o aprovasse positivamente.

Tolhido entre política e religião, o movimento católico foi impotente para impedir a propagação da heresia. Desta forma os hussitas, cujo chefe se tornara João Zizka, dominaram por largos anos na Boêmia. Depois de Wenzel, sucedeu no trono o imperador Sigismundo, mas os hussitas lhe negavam obediência. E começaram as terríveis guerras dos hussitas (de 1420 a 1431), João Zizka repelia todos os ataques e bandos fanáticos entravam pelas terras vizinhas, devastando o que encontraram.

Em 1433 os hussitas já entravam novamente em negociações cm os católicos no concílio de Basileia e depois no congresso de Praga. Pois eles mesmos entre si haviam formado dois partidos: o dos mais fanáticos e o dos moderados, que em 1434 venceram completamente aqueles.

O resultado final daquelas negociações foi que se concedeu a comunhão do cálice aos que confessaram a presença real e total de Jesus Cristo tanto na hóstia consagrada como no vinho consagrado. Uma parte, porém, não ficou contente com tal convenção e formou mais tarde a seita ou união dos “irmãos boêmicos”.

Assim terminaram esfaceladas estas heresias que foram como sementes da futura “reforma” protestante. Assim também se esfacelariam todas as ondas revoltas do orgulho humano, enquanto que a rocha de Pedro, ainda que humilhando-se pelas suas humanas fraquezas, permaneceria pela força de Deus.

Hereges e Heresias, Frei Mariano Diexhans O.F.M., 1ª Edição, 1946.

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