O amor próprio

Só a Deus é devida honra e glória em todos os séculos (1 Tim. 1, 17).

Deus é necessariamente o princípio, o fim e a norma de todas as coisas. Só Ele existe por si, e sem Ele nada existe.

Contudo, o homem, criatura miserável, usurpa os direitos de Deus. Apesar de tão fraco, apesar de ser infinita a distância que que medeia entre Deus e ele, apesar de a razão e a fé mostrarem a sua dependência absoluta de Deus, julga-se senhor de si mesmo, quer atribuir tudo a si, e aspira á estima e amor do seus semelhantes.

Em tudo se revela este egoísmo.

Até as relações íntimas com Deus, até os mesmos exercícios de devoção podem vir marcados com o selo do amor próprio.

Se fazes oração, não é para honrar a Deus, mas por veres que te é útil, que te consola e que excita em ti sentimentos elevados e afetos proveitosos.

Por isso, quando Deus de algum modo se aparta de ti, quando te é menos sensível a sua assistência, ou quando parece que não te ouve, o teu fervor esfria, rezas menos e com menos devoção, murmuras de Deus e apartas-te da sua divina presença.

O insano amor próprio infiltra-se também nas nossas relações com o próximo. E assim se lhe fazemos bem, é porque temos os olhos na sua gratidão e correspondência; se o estimamos, não é porque ele representa a pessoa de Cristo, mas sim porque esperamos o seu afeto e simpatia. Por isso quando esta esperança se desvanece, o nosso amor entibia-se, a nossa mão retira-se, e a nossa ação paralisa-se.

Finalmente, o egoísmo causa-nos prejuízos gravíssimos. É semelhante á traça que nem ao pano de maior valia poupa, ou ao verme que rói e desfaz os frutos mais preciosos.

Não há em nós virtude verdadeira ou aparente que não sejamos os primeiros a admirar, nem falta que não olhemos com indiferença, e que não sejamos os primeiros a desculpar.

O egoísta mira-se e remira-se louva-se, descansa em si, e tudo atribui a si.

Ele é o motivo principal de quanto se faz ou se deixa de fazer, como se todo o mundo e até o próprio Deus existissem unicamente por ele e para ele.

A donzela que entra pelo caminho do amor próprio, perde a melhor e mais formosa qualidade que tem: aquele atrativo que lhe vem da idade e da ternura de afeto; o candor, a ingenuidade, o agrado tudo se esgota e morre.

Torna-se severa, fria e rígida; a afabilidade degenera em dureza, o afeto em interesse, os pensamentos agitam-se sempre em volta de si mesma, a conversação é fútil, e todo o seu ser perde a naturalidade e o agrado.

Os vestidos, modos e conversas tudo está regulado de modo que atraia as atenções; é submissa e obediente, mas para conservar o favor dos outros; é complacente e serviçal, mas para ser amada dos que a rodeiam.

Gosta do louvor, e molesta-a a censura. Ensoberbece-a o triunfo, e abate-a a desgraça.

É caprichosa e exagerada; procura agradar e sobressair.

O amor próprio submete-se a todas estas misérias. Só pensa em si; só vive de si, para si, em si e consigo mesma.

E contudo, Senhor, tudo procede de Vós, tudo é para Vós e Vós e conVosco! Só a Vós, ó Rei da eternidade, imortal e invisível, só a Vós, único Deus, é devida honra e glória em todos os séculos (1).

O egoísmo é uma injustiça flagrante contra Deus, cuja soberania ilimitada nega, cuja honra diminui, a cujos desígnios misericordiosos se opõe.

É inimigo da humanidade, porque introduz a discórdia nesta grande família de irmãos, opondo os interesses duns aos dos outros, criando desconfianças, invejas e inimizades, praticando violências, e deixando-se até arrastar pela crueldade.

Finalmente, é causa de incalculáveis desgraças no indivíduo, porque o aparta do único e verdadeiro Deus, entrega-o ao que é vão e caduco, lança-o nos braços do mal, e arrebata-lhe o sossego e a paz.

Se não houvesse no mundo amor próprio, desapareceria o crime e voltaria novamente a inocência à terra: o homem continuaria em paz a sua peregrinação, e graças ao amor e concórdia de todos, o mundo converter-se-ia num verdadeiro paraíso.

Se o amor próprio não existisse, todos os pensamentos e obras do homem seriam para Deus; amá-lo-íamos, servi-lo-íamos por ele ser quem é, por gratidão aos seus benefícios, e pelas suas perfeições infinitas; conformar-nos-íamos com todas as suas disposições; seríamos humildes na felicidade e resignados da adversidade. Todos se veriam a si mesmos no próximo, e em vez de tratarmos os outros como servos e de os utilizarmos em proveito próprio, submeter-nos-íamos a todos, e a todos serviríamos com generosidade e espírito de sacrifício. Então, cumprir-se-ia em toda a sua amplidão aquele grande mandamento: Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, e com todas as tuas forças: este é o primeiro e principal mandamento. O segundo é semelhante a este: Amarás ao próximo como a ti mesmo.

A Virgem Prudente, Pensamentos e Conselhos acomodados às Jovens Cristãs, por A. De Doss, S.J. versão de A. Cardoso, 1933.

(1) I Tim. 1, 17.

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