O apego aos prazeres dos sentidos é um dos maiores obstáculos à piedade. Os sentidos que Deus nos deu, têm todos grande utilidade, e, para nos levar a aproveitá-los a Providência quis que o seu uso nos proporcionasse vivas satisfações. “Destes prazeres que encontramos no exercício de nossos sentidos, ensina Santo Agostinho, uns são permitidos e outros proibidos: permitidos os prazeres que acha vossa vista na contemplação dos grandes espetáculos da natureza; proibidos os espetáculos teatrais. Os cantos tão suaves dos Salmos deleitam-nos os ouvidos; mas, nossos ouvidos se deleitam também com os cantos dos histriões; os primeiros são lícitos, os últimos ilícitos. Os alimentos permitidos agradam o paladar; mas os alimentos proibidos não lhe são menos agradáveis.”[1] A natureza, por si mesma, não discerne; se não for regrada pela razão, domada pelas privações que a alma lhe impõe, o pendor que sente para tudo o que adula os sentidos, irá sempre crescendo: “Todos os prazeres dos sentidos, diz Bossuet, excitam-se uns aos outros… os mais inocentes, se não estivermos sempre alerta, preparam os mais culpados; os menores deixam entrever a alegria que se experimentaria nos maiores e despertam a concupiscência.”[2]
Assim, lisonjeada, alimentada e desenvolvida, a sensualidade torna-se tirânica. “Adula-se o corpo com tanto afeto que se esquece da alma e da imagem de Deus que ela traz impressa no seu íntimo: nada se recusa a si próprio; um cuidado excessivo da saúde leva em tudo a lisonjear o corpo, e estes sentimentos diversos são outros tantos ramos da concupiscência da carne. Ah! não me admira mais que São Bernardo temesse a saúde perfeita em seus religiosos; sabia até onde ela leva quando não se sabe castigar o corpo como o Apóstolo e reduzi-lo à servidão pelas mortificações, pelo jejum, pela oração, por uma contínua ocupação do espírito. Toda alma pudica foge da ociosidade, das futilidades, da demasia da sensibilidade, das ternuras que enfraquecem o coração, das finas iguarias, de tudo quanto lisonjeia os sentidos, pois isto é pasto para a concupiscência da carne, que São João proíbe, e alimenta-lhe o fogo.”[3] Mostra-nos Bourdaloue como o amor desregrado do corpo procede gradualmente: Há logo, a princípio, o apego a tudo quanto se nos afigura necessário, ou, antes, a tudo quanto a cega cobiça nos representa como necessário ao sustento do nosso corpo; depois, o apego a todas as comodidades que buscamos com tanta ânsia, e que favorecem o nosso corpo; mais ainda, o amor às delícias da vida, que, pela superfluidade e excessos, enfraquecem muitas vezes ou mesmo arruínam o corpo; finalmente o amor dos prazeres proibidos e das voluptuosidades ilícitas, que profanam o corpo.”[4]
Aludindo a um texto de Jeremias: Ascendit mors per fenestras nostras: subiu a morte pelas nossas janelas, [5] São Jerônimo [6] nos diz que os cinco sentidos são as janelas por onde o inimigo entra na fortaleza da nossa alma. o uso da vista, quando não moderado, favorece a curiosidade e a distração, impossibilita o recolhimento e a união com Deus; excita os desejos, pois não se deseja o que não se vê; e, desta arte, fornece às paixões seu alimento. A mais violenta dentre elas, a paixão carnal, encontra grandes incentivos nos olhares imortificados. Limitemo-nos a uns poucos exemplos citados nos Livros Santos. Não foi pelos olhos que sucumbiram a mulher de Potifar, Davi, os anciãos, acusadores de Suzana? Este mesmo sentido, se imortificado, é ainda um perigo para a caridade fraterna, porque, que juízo não fazem os que querem ver tudo? Só se abstêm de julgar seu próximo estes que não se preocupam senão com o que lhes toca de perto. importa muito vigiar este sentido, tanto mais que “a gula dos olhos, no dizer de Bossuet nunca está satisfeita e, por assim dizer, não tem nem fundo nem beira”[7]. É preciso reprimir os olhos, ensina um santo; do contrário, tornam-se ganchos infernais que arrastam irresistivelmente a alma e a fazem cair em pecado contra a própria vontade.
O sentido do ouvido, mal regrado, não é menos perigoso. Ele também favorece a curiosidade, a distração. Quantos sentimentos de descontentamento, de animosidade de antipatia, os homens não se comunicam mutuamente? Quantas murmurações e maledicências que ferem, ao mesmo tempo, os que as proferem e os que se comprazem em lhes prestar ouvidos, sem contar os mesmos perigos, tão temíveis que apontamos como frutos do uso imoderado da vista, os desejos impuros!
Ao abuso do ouvido, deve-se acrescentar – pois os dois são correlativos – o abuso da palavra. o Espírito Santo na Escritura, em muitos lugares, nos acautela contra este perigo. “Senhor, suplica o salmista, ponde guarda à minha boca, sentinela à porta dos meus lábios [8].” “Poupa-se a angústias o que vela sobre sua boca e sua língua.[9] “Sejam as tuas palavras pouco numerosas;… é a voz do insensato que se ouve na multidão das palavras.” [10] Não se evita o pecado falando muito e o que põe um freio a seus lábios é homem prudente.” [11] “Cada um seja pronto em escutar e lento para falar, diz o Apóstolo São Tiago”.[12] “Não se diga, observa São Bernardo, as palavras não pesam, a língua do homem é uma pouca de carne macia; pode ima pessoa digna prestar-lhe grande atenção? Sim, as palavras não pesam, voam ligeiras; mas, às vezes, ferem gravemente; passam rápidas, mas queimam vivamente… Quem pode contar as numerosas faltas que este pequeno membro nos faz cometer!… Se, no dia do juízo, os homens hão de prestar contas das palavras inúteis que houverem proferido, que contas muito mais numerosas não haverão de prestar a Deus de tantos discursos mentirosos, mordazes, injuriosos, blasfemos, lascivos, aduladores, maledicentes?” [13] A sabedoria popular concorda com os ensinamentos da Escritura e dos santos, quando proclama que a palavra é de prata e o silêncio é de outro. Por isso, todos os fundadores de ordens religiosas, querendo que seus discípulos levassem uma vida fervorosa, impuseram-lhes, antes de qualquer outra, a lei do silêncio. “É no silêncio e no sossego, afirma a Imitação, que a alma progride.” [14] Quanto menos se fala com os homens, tanto mais se fala com Deus: os que gostam de se expandir com as criaturas, pouco pensam em entreter-se com o Criador; quando querem, não podem, pois seu espírito, distraído e leviano, a isso se recusa.
O sentido do gosto, mal regrado, traz, por sua vez, grandes obstáculos à piedade. Eva, cujo coração foi ferido pelo orgulho, perpetrou sua obediência, depois de ceder à sedução do gosto. “A mulher viu que a fruta da árvore se podia comer… tomou e comeu.” [15] Muitas vezes, os filhos de Eva são também vítimas do mesmo vício. “Foi um pecado de gula, ensina-nos Luiz de Granada, que introduziu a morte neste mundo e lhe entregou o domínio sobre o gênero humano inteiro. Daí vem que este é o primeiro combate que tendes de sustentar e do qual importa sobremaneira sairdes vitoriosos; porque, quanto mais fracos vos mostrardes tanto mais terríveis serão vossos inimigos. Se, pois, quiserdes subjugá-los, começai pela gula; jugulado este, os outros terão perdido muita força… Eis o que nos explica porque o demônio tentou primeiro por gula o divino Salvador: procurava, antes de tudo, apoderar-se da porta pela qual os outros vícios todos podem entrar.” [16] São Vicente Ferre diz igualmente: “Deveis primeiro combater em vós a gula; porque, se não alcançardes vitória sobre ela, trabalhareis debalde na aquisição das outras virtudes.” [17] Escrevendo sob a inspiração do Espírito Santo, não indica São Pedro a sobriedade como o meio necessário para não cair nas garras de satanás? “Sêde sóbrios e velai, porque vosso inimigo, o demônio, ronda em redor de vós, como um leão rugindo, à procura de sua presa.” [18]
O perigo, no uso do gosto, provém da necessidade de satisfazê-lo numa certa medida e é difícil manter-se dentro dos justos limites. “A gula, assevera Santo Agostinho, não sabe onde acaba a precisão.” [19] Os santos lastimaram esta escravidão e os perigos que acarreta. Santo Agostinho, mas suas Confissões, diz: “Senhor, vós me ensinastes a não tomar os alimentos senão como remédios. Mas, quando quero satisfazer a fome, então a concupiscência me arma ciladas, porque, nesta satisfação, há prazer e não se pode deixar de o experimentar. Com efeito, o comer e o beber sendo necessários para a vida, uma certa voluptuosidade – voluptuosidade perigosa – se fez sua companheira inseparável; muitas vezes procura tomar a dianteira para me obrigar a fazer por ela o que declaro fazer pela minha conservação. Ora, a medida de uma não é a da outra; o que basta para a saúde, parece pouca coisa para o deleite. Não se distingue frequentemente quem reclama, se a necessidade do corpo, se o atrativo enganador da voluptuosidade. E a alma é bastante miserável para se comprazer nesta incerteza e nesta procura uma desculpa, contente de não perceber os limites do que bastaria para a saúde, afim de que o pretexto da necessidade lhe proporcione o ensejo de satisfazer a sua voluptuosidade. Todos os dias estou a braços com esta espécie de tentações… Quanto aos excessos do vinho, estou bem longe deles, mas a gula me surpreende às vezes. [20]”
Haverá culpa no comer e no beber, sempre que a intenção não seja reta e que, em vez de comer e de beber por necessidade, se o faça por mero prazer, quando houver excesso de delicadeza na escolha dos alimentos e das bebidas ou excesso na quantidade.
A gula entorpece o espírito, torna-o menos apto, segundo Santo Tomás, às operações intelectuais; [21] o coração rebaixado por esta sujeição a vis prazeres, não sabe mais apreciar os bens espirituais. “Acautelai-vos, disse Nosso Senhor, com medo que vossos corações não se tornem pesados pelo excesso no comer e no beber.” [22] As pessoas amigas da boa mesa, ou simplesmente imortificadas no uso da comida, nunca se elevam a uma alta piedade. Se a intemperança crescer, gerará um perigo muito maior – o da impureza. “Nada acende o fogo da concupiscência e da raiva com o amor ao vinho e o excesso no uso das bebidas,” diz São João Crisóstomo. [23] “Não vos embebedeis, escreve São Paulo aos Efésios; é a fonte da devassidão.” [24]
O sentido do tato, mais do que todos os outros, foi pervertido pela culpa original. “Tende para os gozos animais, diz Ribet, com uma vivacidade e uma violência que não têm os outros sentidos.” Após haver descrito os excessos do gosto, Bossuet acrescenta: “Mas quem se atreveria a pensar em outros excessos que se manifestam de uma maneira muito mais perigosa em outro prazer dos sentidos? Quem, digo, ousaria falar ou pensar neles, pois não se fala deles sem corar e não se pensa neles sem perigo, nem sequer para cesurá-los? Ó meu Deus, ainda uma vez, quem ousaria falar desta profunda e vergonhosa chada da natureza, desta concupiscência que prende a alma ao corpo com vínculos tão ternos e tão violentos, dos quais custa tanto desvincilhar-se e causa no gênero humano tão medonhas desordens? Ai da terra! ai da terra! mais uma vez, ai da terra! de onde surge continuamente fumaça tão densa, vapores tão espessos que se elevam destas paixões tenebrosas e que escondem à nossa vista o céu e a luz; de onde partem também relâmpagos e raios da justiça divina contra a corrupção do gênero humano.” [25]
A sensualidade cega: animalis homo non percipit ea quae sunt Spiritus Dei; stultitia est illi et non potest intelligere: o homem animal não percebe as coisas do Espírito de Deus, pois são loucura para ele e ele não as pode conhecer. [26] Os anciãos que caluniaram Suzana “perverteram seus sentidos e desviaram os olhos para não verem os céus e não se lembraram dos justos juízos de Deus.” [27] Não há pecado, diz Bourdaloue, que atire o homem numa cegueira mais profunda, porque, no dizer de São Crisóstomo, este pecado é uma sujeição vergonhosa do espírito à carne, e assim torna o espírito inteiramente carnal. Os homens escravos da sua sensualidade perdem mormente três conhecimentos: o conhecimento de si próprios, o conhecimento de seu pecado e o conhecimento de Deus.” [28] O orgulho é mais desordenado, pois, por ele, o homem separa-se de Deus para se adorar a si mesmo; mas a sensualidade é mais aviltante: rebaixa o homem ao nível do bruto.
“Oh! como o apóstolo virgem, o amigo de Jesus! – citamos ainda Bossuet – tem razão de clamar, com todas as forças, para os grandes e os pequenos, para os moços e para os velhos, para os filhos e para os pais: “Não ameis ao mundo nem ao que há no mundo, porque o que há no mundo é concupiscência da carne, apego à frágil e enganadora beleza dos corpos e amor desregrado ao prazer dos sentidos, que corrompe igualmente os dois sexos.” [29]
Aqui, Bossuet aponta “o apego á frágil e enganadora beleza dos corpos.” Esta tendência para os afetos sensíveis e carnais é um dos perigos de maior sedução, um dos mais temíveis que ameaçam as almas piedosas. Se a amizade é louvável, e salutar, quando é e fica sendo sobrenatural, é também perfidíssima quando pende para o sensível e o sensual. “A amizade espiritual, diz São Francisco de Sales, é aquela pela qual duas, três ou mais almas se comunicam sua devoção, seus afetos espirituais e parecem não terem senão uma só e mesma alma.” [30] E o santo Doutor cita exemplos famosos. A amizade honesta repousa na comunidade de vistas, de gostos, de interesses; leva duas ou várias pessoas a se prestarem mutuamente bons serviços. A amizade sensual repousa nos encantos físicos. Se os sentimentos de afeição sensível são energicamente reprimidos, dão lugar a generosos sacrifícios e os sacrifícios do coração são contados entre os mais meritórios e fecundos. Se, pelo contrário, são acariciados e cultivados com ardor, abafam os sentimentos de amor de Deus. “Senhor, declara Santo Agostinho, nós vos amamos menos, quando convosco amamos ainda outra coisa que não amamos por vós.” [31] As pessoas cujo coração se deixa assim cativar por uma criatura, se preocupam muito em lhe agradar e pouco se importam de agradar a Deus. Pensam incessantemente no objeto de seus afetos e esquecem-se de Jesus, seu melhor amigo; procuram ter encontros frequentes e prolongados em que se dizem sua ternura, se comunicam suas pequenas paixões, seus juízos malévolos, suas antipatias, seus azedumes, suas murmurações, seus planos de vãos prazeres. Assim dispostas não rezam mais, ou rezam muito mal; seus exercícios são infrutíferos e tíbias a suas comunhões; é a ruína da piedade, quando não a ruína da virtude.
Manual de Espiritualidade por A. Saudreau, Cônego honorário de Angers. Primeiro Capelão da Casa Madre do Bom Pastor, 1937.
- De verb. apost. Serm. 159.
- Trat. do concupisc. Cap, V.
- Trat. do concupisc.
- II Serm. da 4ª feira de Cinzas.
- IX, 21.
- Adv. Jovin., 1, 2, c. 12; Migne Patr., t. 23, col. 297.
- Loco cit., cap. IX.
- Salmos, CXL, 3.
- Pr., XXI, 23.
- Ecl., V, 2.
- Prov., X, 19.
- L. 19.
- De trip. cust.
- I, 20.
- Gên., III, 6.
- Gui. des. péch., II, 6.
- Traité de la vie spir., VI.
- I Pet., V, 8.
- Contr. Julian, V, 70.
- X, 31.
- 2. 2, q. 15, a. 3.
- Luc., XXI, 34.
- In Epist. ad Rom., hom. 24.
- V, 18.
- Traité de la concupisc., cap. IV.
- I, Cor., II, 14.
- Dan., XIII, 9.
- Serm. sur l’impureté.
- Ibidem.
- Vie dévote, III, 19.
- Conf., X, 29.
Última atualização do artigo em 6 de fevereiro de 2025 por Arsenal Católico