LIBERALISMO É PECADO
D. Félix Sardà y Salvany
12. DE ALGO QUE, PARECENDO LIBERALISMO NÃO O É; – E DE ALGO QUE O É, NÃO O PARECENDODe
É o diabo grande mestre em artimanhas e embustes, e o principal de sua diplomacia consiste em introduzir a confusão nas idéias. O maldito perderia metade do seu poderio sobre os homens, se as idéias, boas ou más, aparecessem francas e bem determinadas. Advirta-se de passagem que não é moda hoje chamar deste modo ao diabo, talvez porque o Liberalismo nos acostumou a tratar também o senhor diabo com certo respeito.
O diabo, pois, em tempo de cisma e heresias, a primeira coisa que procurou foi que se baralhassem e trocassem os vocábulos, meio assaz seguo para trazer desde logo desnorteada e desvairada a maior parte das inteligências. Isto sucedei com o Arianismo, a ponto de vários Bispos de grande santidade chegarem a subscrever no concílio de Milão um fórmula em que se condenava o insigne Atanásio, martelo daquela heresia. E apareceriam na história como verdadeiros fautores dela, se Eusébio mártir, legado pontifício, não houvera acudido a tempo de libertar de tais laços ao que o Breviário chama captivatam simplicitatem de algum daqueles irrepreensíveis anciãos. O menino sucedeu com o Pelagianismo, o mesmo com o Jansenismo no passado. O mesmo acontece hoje com o Liberalismo.
Liberalismo, representa para uns as formas políticas de certa classe; é para outros certo espírito de tolerância e generosidade opostas ao despotismo e tirania; para outros a igualdade civil; e para muitos uma coisa vaga e incerta que poderá traduzir-se simplesmente pelo oposto a toda a arbitrariedade governamental.
Urge, pois, tornar a perguntar aqui: – Que é, ou menor, que coisa não é o Liberalismo?
Em primeiro lugar não são ex se Liberalismo as formas políticas de qualquer classe que sejam, por democráticas ou populares que as suponham. Cada coisa é o que é. As fórmulas são formas, e nada mais. Uma república unitária ou federal, democrática ou mista; um governo representativo ou misto, com mais ou menos atribuições do poder real, ou com o máximo ou mínimo de rei que se queira fazer entrar na mistura; a monarquia absoluta ou moderada, hereditária ou eletiva, nada disto tem que ver ex se (note-se bem, ex se) com o Liberalismo.
Tais governos podem ser perfeita e integralmente católicos. Como aceitem acima da sua própria soberania a de Deus, e reconheçam havê-la recebido dEle, e se sujeitem em seu exercício ao critério individual da lei cristã e dêem por indiscutível em seus Parlamentos tudo o que for definido pela Igreja, e reconheçam como base do direito público a supremacia da mesma Igreja e o seu absoluto direito em tudo o que é da sua competência, – tais governos são verdadeiramente católicos e nada lhes pode lançar em rosto o mais exigente ultramontanismo, porque são verdadeiramente ultramontanos.
A história nos oferece repetidos exemplos de poderosíssimas repúblicas, fervorosamente católicas. Aí está a aristocracia de Veneza, a mercantil de Gênova, e certos cantões suíços.
Como exemplo de monarquias mistas muito católicas, podemos citar a nossa gloriosíssima de Catalunha e Aragão, a mais democrática e ao mesmo tempo a mais católica do mundo na idade média; a antiga de Castela até à casa da Áustria; a eletiva da Polônia até à iníqua desmembração deste religiosíssimo reino.
É uma preocupação crer que as monarquias hão de ser ex se mais religiosas que as repúblicas. Precisamente os mais escandalosos exemplos de perseguição ao catolicismo nos tempos modernos, têm-nos dado monarquias como a da Rússia e da Prússia.
Um governo, de qualquer forma que seja, é católico, se baseia a sua Constituição, a sua legislação e a sua política em princípios católicos; é liberal, se baseia a sua Constituição, a sua legislação e a sua política em princípios racionalistas.
A natureza essencial de uma legislação ou constituição não está em legislar o rei na monarquia, ou o povo na república, ou ambos nas formas mistas; mas sim em que tudo se faça ou não, segundo o selo imutável da fé, conforme o que os Estados como aos indivíduos manda a lei cristã.
Assim com nos indivíduos pode ser igualmente católico um rei com a sua púrpura, um nobre com os seus brasões, um trabalhador com a sua blusa de algodão; assim os Estados podem ser católicos, seja qual for a classificação que se lhes dê no quadro sinótico das formas governativas.
Por conseguinte, nada tem que ver o ser liberal, ou não o ser, com o horror natural, que todo o homem deve professar à arbitrariedade e à tirania, com o desejo d igualdade civil entre todos os cidadãos, e muito menos com o espírito de tolerância e generosidade, que (em sua devida acepção) não são mais que virtudes cristãs. E não obstante, tudo isto na linguagem de certa gente e também de certos periódicos se chama Liberalismo.
Há aqui, pois, uma coisa que parecendo Liberalismo, não o é de forma alguma.
Há porém em troca alguma coisa que, não parecendo Liberalismo, vem a sê-lo efetivamente. Suponha-se uma monarquia absoluta como a da Rússia, ou, se antes quiserem, como a da Turquia, ou um governo dos chamados conservadores de hoje, o mais conservador que seja possível imaginar; e suponha-se que tal monarquia absoluta ou tal governo conservador tem estabelecida a sua constituição e baseada a sua legislação, não sobre os princípios do direito católico, nem sobre a indiscutibilidade da fé, não sobre a rigorosa observância do respeito aos direitos da Igreja, mas sobre o princípio ou da vontade livre do rei, ou da vontade livre da maioria conservadora… tal monarquia e governo conservador são perfeitamente liberais e anticatólicos.
Pouco importa para o caso, que o livre-pensador seja um monarca com seus ministros responsáveis, ou um ministro responsável com seus corpos co-legisladores.
Em ambos os casos anda aquela política informada pelo critério livre-pensador, e por conseguinte liberal. Que tenha ou não tenha, para os seus fins, agrilhoada a imprensa, que açoite por qualquer nada o país, que veja com cara de ferro os seus vassalos, pouco importa; poderá não ser livre aquele mísero país, mas sera perfeitamente liberal.
Tais foram os antigos impérios asiáticos; tais várias monarquias modernas; tal o impeério alemão de hoje, como o sonha Bismark; tal a presente monarquia espanhola, cuja constituição declara inviolável o monarca, porém não declara inviolável a Deus.
Eis aqui o caso de alguma coisa que, parecendo não ser Liberalismo, o é não obstante, e do mais refinado e desastroso, por isso mesmo que não tem essas aparências.
Daqui se verá com que delicadeza se há de proceder quando se trata de tais questões. É preciso antes de tudo definir os termos do debate e evitar o equívoco, que é o que mais favorece o erro.
O Liberalismo é Pecado – Pe. Félix Sardá y Salvany, 1949.