O homem conserva no coração o ódio contra o próximo, e ousa pedir a Deus que lhe perdoe (Ecl. XXVIII, 3).
Não há coisa mais difícil à natureza humana do que observar o preceito do amor do próximo, perdoando a quem nos faz mal. Contra esta prática do amor, revolta-se o amor próprio ofendido. Alborota-se todo o nosso ser à vista da injustiça de que somos vítimas, e o nosso coração clama, pedindo vingança.
E contudo o preceito do amor do próximo não exclui ninguém: Amarás ao próximo como a ti mesmo (1).
Para que nenhum cristão julgue que pode haver alguém que não esteja compreendido na lei que manda amar a todos os homens, o Salvador divino fala expressamente do amor dos inimigos: E eu digo-vos, amai aos vossos inimigos; fazei bem aos que vos odeiam; orai pelos que vos perseguem e caluniam, para serdes verdadeiros filhos do pai celestial (2).
E por fim, na parábola do servo desumano que o senhor entregou aos que o haviam de atormentar até ter saldado toda a sua dívida, conclui: Assim procederá convosco o Pai celeste, se não perdoardes de coração aos vossos irmãos (3).
Foi por isso que o Senhor me ensinou a orar, dizendo: perdoai-nos as nossas dívidas, como nós perdoamos aos nossos devedores (4).
Pode haver preceito mais expresso?
Não, é fácil, ó jovem, que alguém ouse injuriar-te ou ofender-te gravemente na honra, que alguém se atreva a pôr mãos na tua pessoa, ou a arrebatar-te os teus bens.
Então, o que é que ordinariamente te irrita contra o próximo? Alguma palavra indiscreta, ou alguma falta de atenção? negarem-te algum obséquio, não te terem elogiado como desejavas, veres-te indevidamente esquecida ou desprezada, ou encontrares-te em face de alguma contrariedade?
É possível que semelhantes pequenezas sejam razão para se exaltarem os ânimos, para se suscitarem aversões, e se despertarem inimizades, ódios e vinganças?
Já vês que a vaidade ferida, o amor próprio e a inveja, são de ordinário as causas donde nasce este sentimento a que chamas justa indignação.
Falas de ofensas inferidas à tua honra, da tua amizade desprezada, de fidelidade quebrada; mas, ai de ti, se Deus fosse tão susceptível como tu, se estivesse tão pouco propício a perdoar-nos, como nós aos nossos irmãos; se se lembrasse dos agravos que lhe fazemos, como nós nos recordamos dos que recebemos!
Quantas vezes nos acolhemos à misericórdia de Deus, pedindo-Lhe perdão das nossas faltas? e apesar disso o nosso próximo há de pagar com juros a mais pequenina falta; há de ouvir censuras amargas, e não há de voltar a ocupar no nosso coração o lugar que antes nele tinha!
Como te atreves a levantar os olhos para o Salvador crucificado, se no teu coração referve a cólera? Jesus na cruz pediu pelos inimigos que Lhe haviam de dar morte afrontosa, e ofereceu a vida pelos Seus verdugos; e tu, queres vingar uma ofensa ligeira, e tantas vezes imaginária? E queres ter o nome de discípula de Cristo!
Dirás talvez: Eu não pretendo vingar-me, nem guardo dentro de mim nenhum ódio contra os meus inimigos; mas não quero nada com eles.
Tristes palavras, que estão encobrindo o aguilhão do rancor! Porventura foi alguma vez caridade a indiferença? E oxalá, fosse só indiferença! Mas, é ódio mal disfarçado, que, na primeira ocasião te levará a pagar mal com mal.
Mas eu não me posso rebaixar, dizes tu; preciso de fazer compreender ao meu inimigo que procedeu mal. Procedendo assim, pretendo defender os meus direitos. Pois bem: sabe que Deus também tem direito de te dizer: Ama os teus inimigos (5). Sabe que com semelhantes sentimentos ofendes a Deus, e que te prejudicas mais a ti mesma do que ao teu inimigo. Deves pois, perdoar-lhe por amor de Deus. Este é o proceder nobre do verdadeiro cristão: vencer a maldade com a bondade.
Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber: porque procedendo assim, amontoas carvões em brasa sobre a sua cabeça (6).
E agora entra em ti, e vê se no teu coração há algum sentimento de aversão, de rancor ou de vingança contra o próximo. Não deixes que o sol se ponha, estando tu ainda irado (7). Perdoa depressa, sincera e inteiramente para que Deus por sua vez, se compadeça de ti, e te perdoe.
A Virgem Prudente, Pensamentos e Conselhos acomodados às Jovens Cristãs, por A. De Doss, S.J. versão de A. Cardoso, 1933.
(1) Mat. XXII, 39.
(2) Mat. V, 44-45.
(3) Mat, XVIII, 35.
(4) Mat. VI, 12.
(5) Mat. V, 44.
(6) Rom. XII, 20.
(7) Ef. IV, 26.
Última atualização do artigo em 8 de março de 2025 por Arsenal Católico