Ó Deus, nosso Pai, infundi em mim o verdadeiro espírito de piedade e de devoção.
1 – A religião cristã não se limita às simples relações da criatura com o seu Criador. Dada a distância infinita que separa os dois termos, estas relações permaneceram unicamente no domínio da reverencia e do respeito sem nenhum caráter de intimidade, sem nenhum impulso confiante para Deus. O cristão sabe que está ligado a Deus não só pelo laço da criação, já de si tão grande, mas também pela sua elevação ao estado sobrenatural e pela Redenção. O cristão sente-se não só criatura, mas filho de Deus remido por Cristo, e isto confere às suas relações com Deus aquele sentimento de piedade filial que é a alma de toda a sua religião. Contemplemos Jesus nas Suas relações com Deus: Ele sente-Se Filho, Filho que vive pelo Pai de quem recebeu a existência: “o Pai… enviou-me e eu vivo pelo Pai” (Jo. 6, 58); Filho que não tem outro ideal senão o de cumprir a vontade do Pai, à qual adere com todo o ímpeto do Seu coração: “Assim é, ó Pai, porque assim foi Teu agrado” (Mt. 11, 26); Filho que em todas as Suas ações tem unicamente em vista o beneplácito do Pai: “faço sempre o que é do Seu agrado” (Jo. 8, 29). Jesus, o Unigênito do Pai, o único Filho de Deus por natureza, tornou-nos participantes, pela graça, da Sua filiação divina de tal modo que nos podemos “chamar e somos efetivamente, filhos de Deus” (cfr. I Jo. 3, 1); e se o somos é muito justo que procuremos participar também nos sentimentos de piedade filial de Cristo para com o Pai celeste. Esta é a nota característica dada pelo divino Mestre à nossa religião: “Vós, pois – ensinou-nos Ele – orai assim: Pai nosso que estais no céu” (Mt. 6, 9). Não quer que nós consideremos e invoquemos Deus senão como Pai: o Pai que providência a todas as nossas necessidades; o Pai que quer ser invocado em segredo e que em segredo escutará as nossas súplicas; o Pai que quer ser honrado pela observância dos mandamentos e Se compraz em fazer a Sua morada nas almas que O amam. A paternidade divina é o centro da religião cristã e a esta paternidade deve corresponder da nossa parte um sentimento de profunda piedade filial: amar a Deus como um filho ama o seu pai, procurando dar-Lhe prazer em tudo. A piedade é verdadeiramente o coração da nossa religião.
2 – Se Deus quis elevar-nos ao estado de filhos Seus, é justo que vivamos como tais e não como servos. O servo faz só o que é estritamente necessário para obter o salário, para não ser despedido; o filho, ao contrário, nãos e preocupa com a recompensa, mas, amando ternamente o pai, põe-se à sua disposição sem reservas, sem restrições. O servo é preguiçoso, interesseiro, avaro, procura poupar-se o mais possível e não quer dar ao patrão nada mais do que o combinado. O filho não procede assim: para ele não há tempo de trabalho ou de folga, para ele não há nada demasiado fatigante quando se trata de dar gosto a seu pai e, sempre disposto a cumprir as suas ordens, sempre atento aos seus desejos, é feliz por poder repetir a cada instante: “Eis que venho… para fazer a Vossa vontade” (Hebr. 10, 7). Deste modo, nas nossas relações com Deus, a piedade filial leva-nos à devoção que é “a vontade de fazer com prontidão tudo o que diz respeito ao serviço de Deus” (IIª IIª, q. 82, a. 1, co.).
Tanto a piedade como a devoção podem estar vivas na alma, mesmo que esta se sinta árida e fria na parte sensível, a ponto de realizar todos os seus exercícios de oração e de virtude sem experimentar a mínima doçura ou consolação, mas sentindo antes forte repugnância.
Isto não nos deve assustar; S. Tomás ensina que a devoção é um ato da vontade, o qual pode subsistir apesar da aridez, da tibieza, da repugnância e até das rebeliões da parte inferior. O próprio S. Paulo, embora tivesse sido elevado ao terceiro céu, ainda não estava inteiramente livre destas misérias e confessava: “deleito-me na lei de Deus segundo o homem interior; mas vejo nos meus membros outra lei que se opõe à lei do meu espírito” (Rom. 7, 22 e 23). E como S. Paulo, não obstante estas resistências da parte sensível, não estava privado de verdadeira piedade e de verdadeira devoção, do mesmo modo a alma que, apesar de tudo, mantém firme a decisão da vontade de se entregar com prontidão ao serviço de Deus, não está privada delas. Devoção – que deriva do latim devoveo – significa precisamente consagração à divindade; e a alma dá-se inteiramente a Deus, não pelos ímpetos e entusiasmos do sentimento, mas pelo ato da vontade. Quando a devoção carece de todo o atrativo pelas coisas divinas, “vale o dobro, porque a alma realiza igualmente as obras que deve fazer e, além disso, domina o apetite sensível com a força da vontade” (Ven. João de J. M. o.c.d.).
Colóquio – “Ó Deus altíssimo que quisestes ser meu Pai, fazei que eu seja verdadeiramente um filho devoto e amante, atento e dócil aos Vossos convites, desejoso de Vos servir e de Vos dar prazer em todas as cosias. Ó Vós que tendes para mim um coração de Pai, criai tem mim um coração de filho, um coração isento de temor servil, mas rico de temor filial, um coração desinteressado e generoso, que tema uma só coisa: ofender-Vos; que deseje uma só coisa: dar-Vos gosto.
“Que a Vossa vontade seja o meu querer, a minha paixão, a minha honra! Fazei que eu a busque, a encontre e a cumpra. Mostrai-me os Vossos caminhos, indicai-me as Vossas veredas. Ó Pai, Vós tendes desígnios sobre mim; manifestai-nos claramente e fazei que eu os cumpra até obter a salvação da minha alma. Fazei que me seja amarga toda a alegria sem Vós, impossível todo o desejo fora de Vós, insuportável todo o repouso longe de Vós, doce qualquer trabalho feito por Vós.
“Fazei, Senhor, que a minha piedade não seja já um hábito, mas um contínuo impulso do coração… e que o meu espírito, incapaz de Vos desconhecer, ardente em Vos procurar, Vos saiba encontrar, ó Pai benigníssimo.
“Ah! não permitais que Vos desagrade o meu falar! Que, confiante e sereno, eu espere as Vossas respostas, descanse na Vossa palavra!” (S. Tomás).
Acolhei-me, ó Pai, no Vosso abraço, recebei-me na Vossa intimidade! Fazei, eu Vos suplico, que o meu coração não se desencaminha quando Vós o deixais nas trevas e no desânimo, mas que, sustentado pela graça, persevere sempre e Vos procurar e em Vos servir de boa vontade.
Intimidade Divina, Meditações Sobre a Vida Interior Para Todos os Dias do Ano, P. Gabriel de Sta M. Madalena O.C.D. 1952.
Última atualização do artigo em 2 de abril de 2025 por Arsenal Católico