– “Ou comais, ou bebais, ou qualquer outra coisa façais, fazei tudo para a glória de Deus” (1). De toda a eternidade, a vida dos homens na terra, foi traçada pelo Criador e os menores atos desta vida, quando conformes às leis divinas, entram no plano da Providência. Por isso, todas nossas ações, se feitas como Deus quer, tendem para sua glória e para nossa vantagem e quanto maior for a perfeição com que forem executada, tanto mais glorificarão a Deus e prepararão a felicidade dos filhos de Deus.
Todas as ações da nossa vida tendem para a glória de Deus: as ações necessárias à conservação da vida, como os trabalhos com os quais cumprimos nossa missão, e, até, o descanso em que o corpo renova suas forças, o coração se dilata e o espírito se expande e que nos torna mais aptos a novos trabalhos. Nestas diversas ações da vida humana, com efeito, manifestam-se as perfeições de Deus: Seu poder que realiza todas as maravilhas por meio das quais nossa vida se conserva e se desenvolve e nos dá a faculdade de cumprir os deveres do nosso estado; Sua sabedoria que “tudo dispôs com número, peso e medida,”(2) designando, neste imenso organismo, que é a sociedade humana, a cada um sua missão própria e dando-lhe os meios para cumpri-la; Sua bondade, que em tudo procura o nosso bem e tudo ordena para nossa eterna vantagem. No céu, onde todos os planos de Deus aparecem numa deslumbrante claridade, este poder, esta sabedoria, esta bondade fazem a admiração dos anjos e dos eleitos. Eles vêm estes atributos divinos brilharem em toda criatura humana que, aqui na terra, representa dignamente o papel que a Providência lhe designou e, assim, serve a seu Deus, contribui para o bem geral da humanidade e, ao mesmo tempo, consegue para si uma felicidade e uma glória que não hão de ter fim.
Este duplo fim, – a glória de Deus e nossa eterna ventura, – nossas ações as mais comuns o alcançam tanto melhor quanto maiores forem a pureza de intenção e a perfeição com que as fazemos.
PUREZA DE INTENÇÃO. – Desde que a vontade de Deus, ao chamar cada um de nós a seu posto, nos impõe o gênero de vida que devemos levar, é obrigação nossa, antes de mais nada, conformarmo-nos com esta vontade divina e propormo-nos cumpri-la fielmente. Os mínimos pormenores de nossa vida recebem, desta conformidade, um valor sobrenatural. Alguém que, nas suas empresas e ocupações, tivesse exclusivamente em vista os meios de se proporcionar gozos ilícitos, despojaria seus trabalhos de todo merecimento. Quem, pelo contrário, com todo desapego de causas terrenas e inteira abnegação de si, visasse tão somente o beneplácito divino, adquiriria, até com os atos mais simples, mas da vontade de Deus, como as refeições, o sono, os recreios, um tesouro de merecimentos.
Entre estas disposições extremas, há lugar para inúmeros graus de intenções mais ou menos puras, podendo o desejo das satisfações da natureza e preocupações de vanglória, cogitações puramente humanas, mesclarem-se em proporções muito variáveis com o desejo da glória de Deus.
PERFEIÇÃO DAS AÇÕES ORDINÁRIAS. – O Criador, olhando para o conjunto de suas obras, viu que tudo era ótimo. (3) Ele, o Ser perfeito, não pode deixar de amar o que é perfeito. Por isso, o Pai eterno pôs todas suas complacências em seu divino Filho, e as testemunhas de suas obras diziam: “Bene omnia jecit, tudo fez bem”(4). A vontade certa de Deus é que envidemos o melhor de nossos esforços para fazer perfeitamente o que é de nossa obrigação.
Esta aplicação contínua em agradar a Deus, nos mínimos atos da vida, é a prova do grande amor que se Lhe tem. Não disse Jesus: “Quem é fiel nas pequenas cousas, sê-lo-á também nas grandes?” E, com efeito, é preciso uma atenção constante e muita coragem para impor à natureza, rebelde ao esforço, esta vigilância e este trabalho de todo instante, de que só as almas amantes são capazes. Mas, aí está um manancial de grandes merecimentos e um meio eficaz de purificar a própria alma. O desleixo. e a indiferença, ao contrário, revelam uma alma pouco fiel a Deus; e quem pretendesse levar uma vida de piedade e permanecer na mesma indolência, no mesmo pouco caso, lavraria em deplorável ilusão. Maior e mais frequente é a ilusão dos que, sem sombra de remorso, desempenham rapidamente, sem o necessário cuidado, seus deveres de estado para darem mais tempo e atenção a ocupações agradáveis, de seu gosto e não da vontade de Deus.
Deus quis que os maiores Santos que passaram por este mundo, – a Santíssima Virgem Maria e ·o glorioso São José, – consumissem sua vida em trabalhos humildes e ocupações vulgaríssimas, para nos ensinar que a fidelidade amorosa às mais comezinhas obrigações e a perfeita prática das virtudes que exigem, podem elevar uma alma à mais alta santidade.
MEIOS PARA MELHOR SANTIFICAR TODAS AS AÇÕES. – Importa muito, para agir com mais perfeição, não dividir sua atenção e não se preocupar senão com o dever presente. “Cada coisa a seu tempo: há um tempo para nascer e um tempo para morrer, um tempo para semear e um tempo para colher… um tempo para chorar e um tempo para rir, um tempo para se calar e um tempo para falar”. (5) “Age quod agis, faze o que tu fazes”. Esta sentença dos antigos encerra um conselho de grande sabedoria, porque, se, na hora da oração, se está preocupado com a ação, rezar-se-á. mal; (6) se, cumprindo um dever, procura-se por que meios se poderá depois conseguir algum divertimento ou entregar-se a outros misteres, o dever presente será forçosamente desempenhado com distração e desleixo.
A lembrança dos novíssimos, habitual para as almas de fé, anima-as muito a bem cumprirem o que fazem: “Em todos os vossos atos, em todos os vossos pensamentos, diz a Imitação, (7) deveríeis portar-vos como se estivésseis já na hora da vossa morte… É conhecida a recomendação de são Bernardo: “Cada um pergunte a si próprio, antes de começar cada uma de suas ações: se tivesses de morrer logo depois, farias tu isto?” (8) E São Basílio, séculos antes, dissera: “Tem sempre diante dos olhos a tua última hora; quando, ao amanhecer, te levantares, pergunta-te se chegarás à noite, e quando, à noite, te deitares, não tenhas por certo ver o dia seguinte.” (9) Não disse o divino Mestre: “Estai sempre prontos, porque, na hora em que não pensais, o Filho do Homem há de vir”. (10) O supremo Juiz há de nos surpreender como um ladrão, encontramos declarado várias vezes na Escritura. (11) Aquele que prometeu o perdão aos penitentes, diz são Gregório, não prometeu o dia seguinte aos pecadores. (12)
“Conforma-te com o modelo que te foi mostrado em cima da montanha,” declarou o Senhor a Moisés. (13) Deus nos deu modelos perfeitos pelos quais é mister que pautemos nosso proceder: – os Santos, Maria, Jesus. – Como se teria portado São José? como teria agido a Santíssima Virgem no meu lugar? Com que suma perfeição não fez Jesus trabalhos semelhantes aos meus neste instante!… Mais ainda, somos os membros do corpo de Cristo, que quer viver em nós, agir em nós e em nós continuar a obra que Ele começou na terra. Além de uma idéia retíssima, é ainda uma prática excelente esta de unir-se a Jesus, de suplicá-Lo que dirija nossos pensamentos, inspire nossas palavras.
Esta última indústria é melhor que as precedentes, quando se tem luz e pendor para observá-la, porque é um exercício de amor. Daremos, com efeito, a todos os atos tanto mais perfeição e valor quanto maior e mais ardente for o amor com que os fizermos.
REGRA DE VIDA. – Nos atos da vida exterior, cumpre evitar a imprevidência que faz perder ocasiões de praticar a virtude, a inconstância, a fantasia, o desperdício de tempo. etc. Foge-se destes defeitos e dá-se a seu proceder uma direção toda sobrenatural, cingindo-se fielmente à própria regra ou, não sendo religioso, seguindo exatamente um bom regulamento.
Um bom regulamento de vida deve ser dado ou, pelo menos aprovado por um guia espiritual. Deve, levando em conta a situação de cada um, repartir o tempo entre a piedade, o trabalho; o descanso e as diversões; indicar, ainda que sumariamente, os meios para bem fazer cada coisa, desde que a perfeição da vida depende não tanto das obras como do modo de praticá-las. Fixará, pois, o tempo, a duração e a forma dos exercícios de piedade; indicará o que é preciso fazer diariamente, mensalmente, anualmente; encerrará alguns conselhos sobre os deveres de estado, as relações familiares ou sociais, sobre os defeitos a evitar e as virtudes a praticar
Sem ser muito meticuloso ou muito complicado, o regulamento de vida, não será nem incompleto nem vago. A relação exata da maneira por que se cumpriu o regulamento, a declaração das infrações em que se incidiu é uma das finalidades mais úteis da direção.
Parece, à primeira vista, que a regra, ou o regulamento, restringe a liberdade e impõe pesado fardo. Nada disso; executado com amor, torna mais amante a alma e mais virtuosa; liberta-a da sujeição aos seus defeitos e ajuda-a na conquista da plena liberdade dos filhos de Deus.
Manual de Espiritualidade, cap. XXV, por A. Saudreau, Cônego honorário de Angers. Primeiro Capelão da Casa Madre do Bom Pastor, 1937.
(1) I Cor., X, 31.
(2) Sab., XI, 20.
(3) Gên., I, 31.
(4) Marcos, VII, 37.
(5) Ecl., III.
(6) “Se durante os vossos exercícios espirituais, diz Rodrigues (I. part., II Tr., cap IV) vos ocorrer qualquer pensamento de estudo, apresentando-vos alguma razão convincente sobre um ponto de importância, algum luz sobre uma passagem escura, ou a solução de alguma dúvida, afastai, repeli tudo isto, na certeza de que, em vez de perder, lucrareis muito. A ciência que se despreza pela virtude, assevera São Bpaventura, adquire-se depois muito melhor pela própria virtude”. Scienthia quae virtule despicitur, per virtutem postmodum melius invenitur. (In spec. Dis., 2, 5. 7.)
(7) I, 23.
(8) In spec. monach.
(9) Inst. ad fil, spir.
(10) Lucas XII, 40.
(11) I Thess., V, 2 – Apoc., III, 3.
(12) Hom., XII, in Ezech.
(13) Ex., XXV, 40.
Última atualização do artigo em 10 de janeiro de 2025 por Arsenal Católico