Sentimento que o pensamento de Deus naturalmente excita nos nossos corações

Logo que o homem pensa um pouco atentamente na Divindade, sente certa suave emoção de coração, que testemunha que Deus é Deus do coração humano; e nunca o nosso intelecto tem mais prazer do que nesse pensamento da Divindade, cujo menor conhecimento, como diz o Principe dos filósofos, vale mais do que o maior conhecimento das outras coisas, assim como o menor raio de sol ê mais claro do que o maior raio da lua ou das estrelas, sendo até mais luminoso do que a lua e as estrelas juntas. Se algum acidente nos assusta o coração, logo recorre este à Divindade, confessando que, quando tudo lhe é mau, só ela lhe é boa, e que, quando ele está em perigo, só ela, como seu sumo bem, pode salvá-lo e garanti-lo.

Este prazer, esta confiança que o coração humano tem naturalmente em Deus, certamente só pode provir da conveniência existente entre essa divina bondade e nossa alma: conveniência grande, mas secreta; conveniência que cada um conhece e pouca gente entende; conveniência que se não pode negar, mas que bem se pode apreender. Somos criados à imagem e semelhança de Deus: que quer isto dizer senão que temos uma extrema conveniência com a sua divina Majestade? Nossa alma é espiritual, indivisivel, imortal; entende, quer, e quer livremente; é capaz de julgar, discursar, saber e ter virtudes; e nisto se assemelha a Deus. Reside toda no corpo todo, e toda em cada uma das partes deste, assim como a Divindade está toda em todo o mundo, e toda em cada parte do mundo. O homem se conhece e se ama a si próprio por atos produzidos e expressos pelo seu intelecto, os quais, procedendo do intelecto e da vontade distintos um do outro, não obstante ficam e permanecem inseparàvelmente unidos na alma e nas faculdades de que procedem. Assim o Filho procede do Pai, como o seu conhecimento expresso, e o Espirito Santo procede de ambos, como o amor expirado e produzido do Pai e do Filho; Pessoas estas ambas, Filho e Espirito Santo, distintas entre si e distintas do Pai, e, não obstante, inseparáveis e unidas, ou, muito antes, uma mesma, única, simples e indivisível Trindade.

Mas, além dessa conveniência de similitude, há uma correspondência ímpar entre Deus e o homem para sua reciproca perfeição; não que Deus possa receber do homem alguma perfeição, mas porque, como o homem só pode ser aperfeiçoado pela divina Bondade, assim também a divina Bondade não pode simplesmente exercer tão bem a sua perfeição fora de si como em relação à nossa humanidade: uma tem grande necessidade e grande capacidade de receber o bem, e a outra tem grande abundância e grande inclinação para dá-lo. Para a indigência nada é tão oportuno como uma liberal afluência, e a uma liberal afluência nada é tão agradável como uma necessitada indigência; e, quanto mais afluência. tem o bem, quanto mais forte é a inclinação de se expandir e comunicar, tanto mais necessitado é o indigente, tanto mais ávido de receber, como um vácuo de se encher. Doce e desejável encontro é, pois, esse da afluência com a indigência, e quase não poderíamos dizer quem é que tem mais contentamento, se o bem abundante em se expandir e comunicar, se o bem faltante e indigente em receber e tirar, se Nosso Senhor não tivesse dito que coisa mais ditosa é dar do que receber. Ora, onde há mais felicidade há mais satisfação: mais prazer tem, pois, a divina Bondade em dar suas graças do que nós em recebê-las.

Considerando, pois, que nada a contenta perfeitamente, e que a sua capacidade não pode ser preenchida por coisa alguma que esteja no mundo, vendo que o seu intelecto tem uma inclinação infinita para saber sempre mais e a sua vontade um apetite insaciável para amar e achar o bem, não tem nossa alma razão de exclamar: Ah! logo, não sou feita para este mundo! Há algum sumo bem de que eu dependo, e algum obreiro infinito que imprimiu em mim esse intérmino desejo de saber e esse apetite que não pode ser saciado: eis por que é preciso que eu tenda e me estenda para ele, para me unir e juntar à sua bondade, a que pertenço e de quem sou.

Já que esta vida é cheia de misérias, nela não podemos ter nenhum consolo mais sólido do que estarmos certos de se ir ela dissipando para dar lugar a essa santa eternidade que nos é preparada na abundância da misericórdia de Deus, e à qual nossa alma aspira incessantemente pelos contínuos pensamentos que a sua própria natureza lhe sugere, posto que não a possa esperar senão por outros pensamentos mais elevados que o Autor da natureza infunde nela.

De certo, eu nunca sou atento à eternidade senão com muita suavidade; porquanto, digo, como poderia minh’alma estender seu pensamento a essa infinidade, se não tivesse alguma espécle de propor­ção com ela? Certamente, sempre é de mister que a faculdade que atinge um objeto tenha com esse objeto alguma sorte de conveniência. Mas, quando sinto que o meu desejo corre atrás do meu pensamento sobre essa mesma eternidade, o meu contentamento toma um incremento inigualado; pois sei que nunca desejamos com verdadeiro desejo senão as coisas possíveis: que mais me resta então senão esperar que o hei de ter? E isto me é dado pelo conhecimento da infinita bondade d’Aquele que não teria criado uma alma capaz de pensar e de temer para a eternidade, se lhe não tivesse querido dar os meios de alcançá-la. Assim, achamo-nos ao pé do Crucifixo, escada pela qual, destes anos temporais, passamos aos anos eternos.

O Segredo da Salvação, A Lembrança da presença de Deus e as Orações jaculatórias, extraído das Obras de S. Francisco de Sales, por Fernando Millon, Missionário de S. Francisco de Sales, 1952.

Última atualização do artigo em 7 de janeiro de 2025 por Arsenal Católico

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