Sobre o Magistério Infalível do Papa – Parte 1

O que mais preocupa os católicos na atual crise da Igreja é precisamente o “problema do Papa”. Precisamos de ideias muito claras sobre esse assunto. Devemos evitar naufragar à direita ou à esquerda, seja pelo espírito de rebelião ou, por outro lado, por uma inapropriada e servil obediência. O preocupante erro que está por trás de muitos dos atuais desastres é a crença de que o “Magistério Autêntico” não é diferente do “Magistério Ordinário”.

O “Magistério Autêntico” não pode ser simplesmente identificado como sendo o próprio Magistério Ordinário. Com efeito, o Magistério Ordinário pode ser infalível e não-infalível, e é apenas no segundo caso que é chamado de “Magistério Autêntico”. O Dictionnaire de Théologie Catholique [daqui em diante citado como DTC – N.E.] no verbete “infalibilidade papal” (Vol. VII, col. 1699ss) faz as seguintes distinções: 1) Existe a “definição infalível ou ex cathedra no sentido definido pelo Vaticano I” (col. 1699); 2) Existe o “ensinamento papal infalível que provém diretamente do Magistério Ordinário do papa” (col. 1705); 3) Existe o “ensinamento papal não-infalível” (col. 1709).

De maneira similar, Salaverri, em sua Sacrae Theologiae Summa (vol. I, 5ª ed. Madrid, B.A.C.) distingue: 1) Magistério Papal Extraordinário Infalível (nº 592ss); 2) Magistério Papal Ordinário Infalível (nº 645ss); 3) Magistério Papal que é mere authenticum, ou seja, apenas “autêntico” ou “autorizado” no que diz respeito à sua própria pessoa, e não no que diz respeitos à sua infalibilidade (nº 659ss).

Embora o papa tenha sempre total e suprema autoridade doutrinal, ele nem sempre a exerce no mais alto nível, ou seja, no nível da infalibilidade. Como dizem os teólogos, ele é como um gigante que nem sempre usa sua força total. O que acontece é o seguinte:

1) “Seria incorreto dizer que o papa é infalível simplesmente por possuir a autoridade papal”, conforme lemos nos Atos do Vaticano I (col. L ac. 399b). Isso seria o mesmo que dizer que a autoridade do papa e sua infalibilidade são a mesma coisa.

2) É necessário saber “qual o grau de assentimento é devido aos decretos do Sumo Pontífice quando ele está ensinando em um nível que não é aquele da infalibilidade, i.e quando ele não está exercendo em sumo grau sua autoridade doutrinal” (Salaverri, op. cit., nº 659).

Erro por excesso e/ou por defeito

Infelizmente, essa tríplice distinção entre Magistério Extraordinário, Magistério Ordinário Infalível e o Magistério autêntico não-infalível caiu no esquecimento. Isso resultou em dois erros opostos na situação crítica da Igreja dos tempos atuais: o erro por excesso daqueles que estendem a infalibilidade papal a todos os atos do papa, indistintamente; e o erro por defeito daqueles que restringem a infalibilidade à definições que foram pronunciadas ex cathedra.

O erro por excesso elimina efetivamente o Magistério Ordinário Não-Infalível ou “Autêntico” e leva inevitavelmente ou ao sedevacantismo ou à obediência servil. A atitude das pessoas nesse segundo caso é: “O papa é sempre infalível e, portanto, sempre devemos a ele obediência cega”.

O erro por defeito elimina o Magistério Ordinário Infalível. Este é precisamente o erro dos neomodernistas, que desvalorizam o Magistério papal ordinário e a “Tradição romana”, que eles consideram tão inconveniente. Eles dizem: “O papa é infalível apenas em seu Magistério Extraordinário, de modo que então podemos eliminar 2000 anos do Magistério papal ordinário”.

Ambos os erros obscurecem a noção precisa de Magistério Ordinário, que inclui o Magistério Infalível Ordinário e o Magistério ordinário, “autêntico”, não-infalível.

Confusão e controvérsia

Esses dois erros opostos não novos. Eles foram denunciados inclusive antes do Vaticano II. Em 1954, o Fr. Labourdette, O. P. escreveu:

Muitas pessoas mantiveram ideias muito ingênuas sobre o que aprenderam a respeito da infalibilidade pessoal do sumo pontífice no exercício solene e anormal do seu poder de ensinar. Para alguns, todas as palavras do sumo pontífice farão de alguma maneira parte de algum ensinamento infalível, requerendo o assentimento absoluto da fé teologal; para outros, os atos que não são apresentados manifestamente acompanhados das condições de uma definição ex cathedra farão parecer que ele não tem maior autoridade que a de qualquer doutor privado (Revue Thomiste, LIV, 1954, p. 196)!

Dom Paul Nau também escreveu acerca da confusão que surgiu entre a autoridade do papa e sua infalibilidade:

Por uma estranha inversão, quando a infalibilidade pessoal do papa em juízo solene, tão longamente discutida, foi definitivamente colocada acima de toda controvérsia, é que o Magistério Ordinário da Igreja Romana que parece ter sido perdido de vista.

Tudo aconteceu – já que é sem precedentes na história da doutrina – como se o próprio brilho da definição do Vaticano I tivesse ofuscado a verdade até então universalmente reconhecida; quase podemos dizer, como se a definição da infalibilidade dos juízos solenes tivessem feito com que a partir de então esse tenha passado a ser o único método pelo qual o sumo pontífice promove a regra da fé (Pope or Church? Angelus Press, 1998, p. 13).

Acerca do obscurecimento temporário de uma doutrina na consciência católica, veja o verbete “dogme” no DTC (vol. IV).

Dom Nau também mencionou as desastrosas consequências que surgem dessa identificação da autoridade e da infalibilidade do papa:

Nada sobraria de intermediário entre os atos privados e os solenes juízos papais para um ensinamento que, embora autêntico, não é igualmente garantido ao longo de suas várias expressões. Se as coisas são vistas dessa perspectiva, a própria noção de Magistério Ordinário torna-se, dito de maneira apropriada, impensável (Pope or Church? p. 4).

Dom Nau levou em conta de onde esse fenômeno se desenvolveu:

Desde 1870 [ano do Vaticano I], os manuais de teologia adotaram fórmulas nas quais suas declarações doutrinais foram enquadradas a partir da própria redação do texto do Concílio. Nenhum desses manuais trataram em termos próprios do ensinamento ordinário do papa, de modo que o assunto foi, pouco a pouco, saindo do campo de visão e todo o ensinamento pontificial foi reduzido somente às solenes definições ex cathedra. Uma vez que a atenção foi totalmente direcionada a estas, tornou-se costumeiro considerar as intervenções doutrinais da Santa Sé somente do ponto de vista de juízo solene, de um juízo que deve em si mesmo trazer em sua doutrina todas as garantias de certeza (ibid., p. 13).

Isso em parte é verdade, mas não devemos esquecer que a teologia liberal já vinha propagando sua agenda reducionista. É por isso que Pio IX, mesmo antes do Vaticano I (1870), sentiu-se obrigado a advertir os teólogos alemães que a submissão da fé “não deve ser restrita apenas àqueles pontos que já foram definidos” (Carta ao Arcebispo de Munique, 21 de dezembro de 1863).

As ideias ingênuas mantidas por muitos acerca da questão da infalibilidade papal após o Vaticano I deu vantagem à teologia liberal. Com efeito, enquanto os dois erros são diametralmente opostos, eles estão unidos ao equalizar a autoridade papal e a infalibilidade papal. Qual a diferença entre eles? O erro por excesso, que considera infalível tudo que vem da autoridade papal, estica a infalibilidade do papa até ela se tornar tão extensa quanto sua autoridade. O erro por defeito, considerando apenas aquelas coisas autorizadas que emanam da infalibilidade ex cathedra, restringe a autoridade papal ao escopo da infalibilidade do Papa no Magistério Extraordinário. Assim, ambos os erros têm o mesmo efeito, ou seja, obscurecer a própria noção de Magistério Ordinário e, por conseguinte, a natureza particular do Magistério Ordinário Infalível. É essencial que redescubramos essa noção e sua natureza, pois elas são da mais alta importância na medida em que nos ajuda a carregarmos nossas cargas durante este tempo de crise.

O Magistério Ordinário nas sombras: Humanae Vitae e Ordinatio Sacerdotalis

A ausência de ideias claras acerca do Magistério Ordinário do papa manifestou-se plenamente com a encíclica Humanae Vitae de Paulo VI e, mais recentemente, com a Ordinatio Sacerdotalis, onde João Paulo II repetiu a recusa da Igreja em ordenar mulheres.

Quando Humanae Vitae foi publicada, vários teólogos indicaram que a noção de Magistério ordinário papal havia sido obscurecida. Falando de maneira geral, aqueles que sustentavam a infalibilidade de Humanae Vitae deduziram “a prova [da sua infalibilidade – N.E.] com base no Magistério Autêntico constante e universal da Igreja, que nunca foi abandonado e, portanto, já era definitivo nos primeiros séculos”; em outras palavras, com base no Magistério Ordinário Infalível (E. Lio, Humanae Vitae ed infallibilità, Libreria Ed. Vaticana, p. 38). Eles deveriam ter percebido que mesmo a noção de Magistério Ordinário Infalível e sua particularidade [sua constância e universalidade – N.E.] foi apagada das mentes não apenas dos meros fiéis, mas também dos teólogos. O Cardeal Siri comentou:

Ao apresentar apenas duas hipóteses possíveis para o caso em questão [a encíclica Humanae Vitae – N.E.], seja uma definição ex cathedra [que foi evitada – N.E.], isto é, procedendo do Magistério solene, seja aquela do Magistério Autêntico [que em si mesmo não implica infalibilidade – N.E.], um grave sofisma na enumeração foi cometido. Na verdade, isso é um grave erro, pois há outra hipótese possível: a do Magistério Ordinário Infalível. É muito estranho como certas pessoas sofrem para evitar falar disso… É necessário se dar conta que não há apenas um Magistério solene e simplesmente um Magistério Autêntico; entre esses dois há também o Magistério Ordinário que é dotado com o carisma da infalibilidade (Renovatio, Out-Dez, 1968).

O mesmo “sofisma de enumeração” foi apontado 30 anos depois pelo Mons. Bertone, falando contra a oposição à Ordinatio Sacerdotalis. Nessa ocasião, ele denunciou explicitamente a tendência “a substituir de facto o conceito de autoridade pelo de infalibilidade” (L’Osservatore Romano, 20 de dezembro de 1996).

Na verdade, não é apenas o Magistério Ordinário Infalível que caiu no esquecimento, mas, como a autoridade e a infalibilidade foram niveladas, a distinção entre Magistério Ordinário Infalível e o Magistério Autêntico foram também consignados ao esquecimento. Após o Vaticano I, conforme Dom Nau escreveu,

Os católicos não têm mais qualquer razão para hesitar acerca da autoridade a ser reconhecida nos juízos dogmáticos pronunciados pelo sumo pontífice; sua infalibilidade foi solenemente definida na Consituição Pastor Aeternus… Mas definições desse tipo são relativamente raras. Os documentos pontifícios que mais aparecem para o cristão hoje são encíclicas, alocuções e radio-mensagens que comumente derivam do Magistério Ordinário ou do ensinamento ordinário da Igreja. Infelizmente, é aí que as confusões continuam possíveis e ocorrem, infelizmente, muito frequentemente (op. cit., p. 3).

Assim, dedicaremos nossos esforços não ao Magistério Extraordinário (cuja infalibilidade é geralmente reconhecida), mas ao Magistério Ordinário. Tão logo tivermos ilustrado as condições sob as quais ele é infalível, ficará claro que, fora dessas condições, estamos na presença do Magistério “autêntico” no qual, em tempos normais, devemos dar a devida consideração. Todavia, em tempos anormais, seria um erro fatal nivelar esse Magistério “autêntico” com o Magistério infalível (seja ele “extraordinário” ou “ordinário”).

Fonte: SSPX Asia – Tradução: Dominus Est

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