O perigo de ser atraído para o erro
Os católicos estão menos preparados para enfrentar a crise do Magistério Pontificial Autêntico porque a confusão em suas mentes a respeito da distinção entre o Magistério Ordinário Infalível do papa e seu Magistério Ordinário simplesmente “autêntico”. Esse problema foi destacado antes do Vaticano II; ele fez e continua fazendo com que os católicos sejam atraídos para o erro ao acreditar erroneamente que eles deveriam dar igual assentimento à todas as palavras do papa, negligenciando as distinções e as condições precisas as quais estamos aqui recapitulando.
“A obrigação de acreditar firmemente sem examinar o assunto em questão… pode ser realmente vinculante apenas se a autoridade em questão é infalível” (Billot, De Ecclesia, tese XVII). É por isso que um assentimento firme e incondicional é exigido no Magistério Infalível (seja ele Ordinário ou Extraordinário).
Quanto às decisões doutrinais não-infalíveis proferidas pelo papa e pelas congregações de Roma, há um estrito dever de obediência que nos obriga a dar assentimento interno… isso é prudente e habitualmente exclui toda dúvida razoável, mas esse assentimento é legitimado não pela infalibilidade, mas antes pelo alto grau de prudência com o qual a autoridade eclesiástica habitualmente age em tais circunstâncias (verbete “Église” in DTC, vol. IV, col. 2009).
É por isso que ao Magistério “autêntico” devemos não um cego e incondicional assentimento, mas um prudente e condicional:
Como nem tudo ensinado pelo Magistério Ordinário é infalível, devemos perguntar que tipo de assentimento devemos dar às suas várias decisões. Ao cristão é requerido dar assentimento de fé à todas as verdades morais e doutrinais definidas pelo Magistério da Igreja. Não se requer que ele dê o mesmo assentimento ao ensinamento transmitido pelo soberano pontífice que não é imposto ao todo do corpo dogmático cristão. Neste caso, basta dar aquele assentimento interno e religioso que damos à autoridade eclesiástica legítima. Esse não é um assentimento absoluto, pois tais decretos não são infalíveis, mas apenas um assentimento prudencial e condicional, visto que em questões de fé e moral há a presunção em favor daquele que é superior… Tal assentimento prudencial não elimina a possibilidade de submeter a doutrina a mais exames, se tal parecer necessário perante a gravidade da questão (Nicolas Jung, Le Magistère de L’Èglise, 1935, pp.153, 154).
Infelizmente, todas essas verdades desapareceram da consciência católica, assim como desapareceu a noção de Magistério “autêntico”. O mundo católico está cada vez mais em perigo de ser atraído para o erro, já que se nutre a ingênua convicção que Deus nunca permitiu que os papas errassem, mesmo no Magistério Ordinário (e aqui não se fazem distinções), e assim se imagina que o mesmo assentimento deve sempre ser dado ao Magistério papal – o que de maneira alguma corresponde ao ensinamento da Igreja.
Infalibilidade e “graça de estado”
Nossa discussão sobre a “graça de estado” do soberano pontífice procede no contexto do Magistério Autêntico. Quando o papa empenha sua infalibilidade, ele goza de uma divina assistência que lhe é inteiramente especial, além da graça de estado. Não obstante, mesmo a infalibilidade não o reduz ao nível de um autômato. Com efeito:
A assistência divina não isenta o portador do poder doutrinário infalível da obrigação de se esforçar para conhecer a verdade, especialmente por meio do estudo das fontes da Revelação (Dz 1836).
É por isso que, em seu Magistério Infalível, o papa goza de: 1) assistência positiva do Espírito Santo de modo que ele possa alcançar a verdade e 2) assistência negativa pela qual ele é preservado do erro. Em última análise, no caso de um papa, por negligência ou má vontade, vier a falhar no seu dever de buscar a verdade por meios apropriados, a infalibilidade garante que Deus, por meio de uma assistência puramente negativa, previna a proclamação ex cathedra de um erro.
Essa garantia não existe no caso do Magistério Autêntico, pois ele não goza do carisma da infalibilidade. É por isso que tudo é confiado apenas à graça de estado, que impele o papa a agir com aquele “alto grau de prudência” que, normalmente, resplandece do Magistério Autêntico dos sucessores de Pedro. Se, todavia, o papa falhar em alcançar isso, nenhuma promessa divina garante que Deus intervirá e o impedirá.
Em tal caso, de fato, o mundo católico correria o risco de ser levado ao erro. Mas não seria por causa da falta de infalibilidade do papa; sob tais condições, ele gozaria de infalibilidade assim como seus predecessores. Nem seria por ele estar privado da graça de estado, mas antes por ele não tê-la buscado. O risco disso é tanto maior na medida em que os princípios que estamos mostrando aqui caíram no esquecimento.
Quando o mundo católico compreendeu claramente esses princípios, o perigo de ser levado ao erro foi muito menor. Na história da Igreja, descobrimos que foi a resistência justificada de cardeais, universidades católicas, príncipes católicos, religiosos e simples fiéis que impediram a faux pas de vários papas, tais como os papas João XXII e Sisto V, a respeito do qual São Roberto Belarmino escreveu a Clemente VIII:
Sua Santidade sabe o perigo ao qual Sisto V expôs a si mesmo e toda a Igreja quando ele intentou corrigir a Sagrada Escritura de acordo com as próprias luzes do seu intelecto. Na verdade, não sei se a Igreja já fora sujeita a perigo mais grave (verbete “Jésuites: travaux sur les Saintes Écritures” in F. Vigouroux, Dictionnaire de la Bible, vol. III, cols.1407-1408).
Esse perigo foi identificado e rejeitado pelo mundo católico. Na realidade, aqueles que atribuem infalibilidade total ao papa estão fazendo um desserviço a si mesmos, à Igreja e ao papa, conforme o tempo presente nos mostra claramente. Uma faux pas papal é uma severa tribulação ao mundo.
Tempos normais e tempos anormais
Em tempos normais, os fiéis podem recorrer ao Magistério Pontificial “autêntico” com a mesma confiança com que eles recorrem ao Magistério Infalível. Em tempos normais, seria um gravíssimo erro deixar de levar em consideração inclusive o Magistério simplesmente “autêntico” do romano pontífice. É assim, pois se fosse permitido a cada um, diante de um ato da autoridade docente, suspender seu assentimento ou mesmo duvidar dele, ou até mesmo rejeitá-lo positivamente na medida em que aquele ato não implica uma decisão infalível, a ação real do Magistério eclesiástico se tornaria praticamente ilusória, pois é relativamente raro que ela se traduza em definições desse gênero (DTC, vol. III, col. 1110).
Não se deve esquecer (como foi esquecido nos dias de hoje) que a segurança do Magistério Autêntico não está vinculada à infalibilidade, mas ao “alto grau de prudência” com o qual os sucessores de Pedro “habitualmente” procedem, e ao “habitual” cuidado que eles tomam para nunca desviar do ensinamento explícito e tácito de seus predecessores. Tão logo esse cuidado e essa prudência venham a faltar, nós não estamos mais em tempos normais. Em tal situação, seria um erro fatal nivelar o Magistério Autêntico do romano pontífice com o Magistério Infalível (Ordinário ou Extraordinário). Esses tempos anormais são raros, graças a Deus, mas eles não são impossíveis. Se não quisermos ser tragados pelo erro, precisamos urgentemente lembrar que o assentimento devido ao Magistério não-infalível é
…aquele do assentimento interior, não como o de fé, mas como o de prudência, e aquele que recusasse esse assentimento não poderia evitar a marca da temeridade, a menos que a doutrina rejeitada fosse de fato uma novidade ou envolvesse uma clara discordância entre a afirmação pontificial e a doutrina que foi até então ensinada (Dom Paul Nau, Pope or Church? op. cit. p. 29).
Dom Nau deixa claro que esse assentimento prudencial não aplica-se ao caso de um ensinamento que já é “tradicional”, que nesse caso pertenceria à esfera do Magistério Ordinário Infalível. Todavia, no caso do ensinamento que não é “tradicional”, a reserva a qual nos interessa aqui aplica-se: “a menos que a doutrina rejeitada… envolvesse uma clara discordância entre a afirmação pontificial e a doutrina que foi até então ensinada”. Tal situação legitimaria a rejeição da doutrina e não implicaria a “marca da temeridade”. Esse tipo de “discordância” seria uma hipótese impossível? Dom Nau, cujo vínculo com o papado estava acima de qualquer dúvida, escreveu:
Essa não é uma situação que pode ser excluída a priori, visto que não diz respeito à uma definição formal. Mas, como diz o próprio Bossuet, “É tão extraordinário que não acontece mais que duas ou três vezes a cada mil anos” (Pope or Church? p. 29).
Em tal caso, recusar o assentimento não apenas não significa temeridade: é um dever positivo. A “discordância” com a “doutrina que foi até então ensinada” dispensa o católico de toda obrigação de obediência nesse caso:
É um princípio geral que se deve obedecer às ordens de um superior a menos que, em um caso concreto, a ordem se pareça manifestamente injusta. Paralelamente, um católico está obrigado a aderir interiormente aos ensinamentos da autoridade legítima até que não lhe seja evidente que uma asserção particular é errônea (DTC, vol. III, col. 1110).
No caso que estamos examinando, evidência de erro é fornecida quando um ato do Magistério Autêntico está em desacordo com o Magistério Extraordinário ou Ordinário Infalível, i.e., em desacordo com a doutrina tradicional, a qual a consciência católica está vinculada eternamente.
A fé não requer a abdicação da lógica
Para concluir, citaremos um teólogo cuja morte é muito lamentável. Ele teve um vislumbre muito claro da doutrina que estamos relembrando aqui, além de saber muito bem o que foi levado à confusão pelos Novos Teólogos. Ao argumentar contra Joseph Kleiner acerca da clara contradição entre a Auctorem Fidei de Paulo IV, que condena a concelebração, e a Instructio de Paulo VI, que a encoraja, o Fr. Joseph de Sainte-Marie, O.C.D. escreveu:
Houve alguma vez em que pudéssemos encontrar onde o Magistério interveio contra uma declaração do Magistério? Na sua cabeça [i.e. na de Joseph Kleiner – N.E.] a resposta deve ser negativa: Não, pelo bem da infalibilidade do Magistério. Essa infalibilidade implica certamente que a Igreja não pode contradizer-se, mas apenas sob uma condição que nosso autor esqueceu, ou seja, que ela empenha a completude da sua infalibilidade em tal ato; ou, no caso do Magistério Ordinário (e devemos tomar muito cuidado para não minimizar a autoridade deste último), desde que ele se conforme com os ensinamentos do Magistério Infalível, seja nos seus atos solenes ou no seu ensinamento constante. Se essas condições não são respeitadas, não é nada impossível uma “intervenção” do Magistério estar em contradição com outra. Não há nada que abale a fé aqui, pois a infalibilidade não está envolvida; mas a sensibilidade do povo católico está certa em se escandalizar com isso, pois tais fatos revelam uma profunda desordem no exercício do Magistério. Negar a existência desses fatos em nome de um errôneo entendimento da infalibilidade da Igreja, e negá-la a priori, é fazer o extremo oposto das exigências da teologia, da história e do mais elementar senso comum.
Os fatos estão aqui. Eles não podem ser negados. Demos um exemplo deles, e outros podem ser dados. Bastará lembrar a Institutio Generalis que introduz o Novus Ordo Missae, particularmente o celebrado Artigo 7. Lá, os dogmas da Eucaristia e do sacerdócio foram apresentados em termos tão ambíguos, e tão obviamente protestantizados – para não dizer mais – que eles tiveram que ser retificados. Essa Institutio, todavia, fez parte de uma “intervenção do Magistério”. Ela deveria ser aceita nesses termos, quando estava indo em uma direção manifestamente contrária ao do Concílio de Trento, onde a Igreja empenhou sua infalibilidade? Se fôssemos seguir a abordagem preconizada por Joseph Kleiner e tantos outros, a resposta seria: “Sim”. Mas para fazer isso, teríamos que engolir a contradição negando que há uma contradição – o que por si mesmo é contraditório. Isso seria uma verdadeira abdicação do intelecto, e nos deixaria indefesos diante de um princípio de autoridade que estaria totalmente fora do controle da verdade. Tal atitude não está em conformidade com o que o próprio Magistério requer dos fiéis. A fé pede a submissão do intelecto diante do Mistério que o transcende, não uma abdicação quando confrontada com as demandas de coerência intelectual que pertencem à sua esfera de competência; o juízo é uma virtude do intelecto. É por isso que quando uma contradição é evidente, como nos dois casos citados, o dever do fiel (e ainda mais o dever do teólogo) é dirigir-se ao Magistério e pedir que tal contradição seja removida (L’Eucharistie, salut du monde, Paris, ed. du Cèdre, 1981, p. 56ss).
Nada há a se acrescentar ao que foi dito, exceto talvez convidar os leitores a implorar pela Piedade Divina, através da intercessão do Imaculado Coração de Maria, para que se remova o quanto antes do mundo católico essa tremenda tribulação. – Hirpinus.
Fonte: SSPX Asia – Tradução: Dominus Est