Meio termo entre as coisas puramente materiais e os anjos, constando, ao mesmo tempo, de corpo (matéria) e alma (espírito), o homem ocupa singular posição entre as criaturas. O seu estudo nos importa de modo particular, porque, estudando-o, estamos estudando a nós mesmos.
A criação do homem
A Bíblia narra assim a criação do homem: Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. E criou Deus o homem à sua imagem” (Gn 1, 26 e 27). E explica: “O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra e inspirou-lhe no rosto um sopro de vida, e o homem tornou-se alma vivente” (Gn 2, 7).
Por aí se vê que o primeiro homem foi criado por Deus em corpo e alma. É, portanto, falsa a opinião dos que pensam que o corpo humano se tenha formado da evolução dos outros organismos inferiores, mesmo se ensinarem que Deus criou diretamente a alma. Também cientificamente é falsa esta opinião. De fato, nunca apareceram os exemplares da transformação, os tipos intermediários entre o macaco e o homem.
Seria infantil pensar que Deus fez Adão como nós fazemos um boneco de barro. Lembremo-nos do modo pelo qual Deus criou: “Disse e as coisas foram feitas”.
Composto de corpo e alma, Adão recebeu de Deus os dons que constituem a natureza humana, isto é, tudo o que é necessário para poder ser homem. São a sensibilidade, a inteligência e a vontade, os chamados dons naturais. Estas coisas são essenciais à natureza humana: sem elas não há o homem.
Além disto, Deus deu ao homem outros dons, que ampliavam e aperfeiçoavam os dons naturais. Isentou-o da concupiscência desenfreada que nos inclina desordenadamente para as coisas sensíveis; deu-lhe todos os conhecimentos de que ele tinha necessidade para atingir o seu fim (isenção da ignorância); conferiu-lhe a imortalidade; garantiu-lhe uma felicidade perfeita, em que o preservava da dor e das penas do trabalho. Estes dons foram acrescentados por Deus, e não eram devidos à natureza humana. Chama-se dons preternaturais.
Deus fez muito mais com Adão. Elevou-o ao estado sobrenatural, dando-lhe a graça santificante. tornou o homem participante da natureza divina. De simples criatura fez com que o homem se tornasse filho adotivo de Deus. É o estado de graça, o dom sobrenatural, pois que está acima de toda a natureza criada.
A queda
Deus não quis que Adão ficasse com tudo isto gratuitamente de todo. Para que ele pudesse merecer, submeteu-o a uma prova. “Tomou, pois, o Senhor Deus o homem e o colocou no paraíso de delícias, para que o cultivasse e guardasse; e lhe deu um preceito, dizendo: Come de todas as árvores do paraíso, mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porque, em qualquer dia que comeres dele, morrerás” (Gn 2, 15-17). Adão, porém desobedeceu. Tentada pelo demônio, Eva tirou o fruto da árvore, comeu, e depois deu a seu marido, que também comeu (ver o cap. 3 do Gênesis). É isto o pecado original.
Consequências
Com isto, o homem perdeu todos os dons preternaturais e sobrenaturais, que tinham sido acrescentados à natureza humana. Perdeu o direito ao céu, onde só podia entrar pela graça divina. Por isto se diz que o pecado original fechou o céu. Foi castigado com a morte: “tu és pó, e em pó te hás de tornar; – com as penas e dificuldades do trabalho: “Comerás o pão com o suor do teu rosto”; – logo percebeu que estava despido e se envergonhou; – e foi expulso do paraíso.
Quanto aos dons naturais, Adão não os perdeu, porque são essenciais à natureza humana. Mas eles se enfraqueceram e desorganizaram. A inteligência se obscureceu, ficando com dificuldade para conhecer a verdade, com facilidade para cair em erro, e se inclinando mais para o conhecimento das coisas temporais do que para as eternas. A vontade se enfraqueceu na busca do bem, sentindo dificuldades para a virtude, porque ficou inclinada para o mal e para os bens sensíveis. A sensibilidade se desenvolveu demasiadamente, rebelando-se contra o espírito, e, muitas vezes, vencendo-o, porque ele está enfraquecido.
Esta desordem é o resultado do pecado original, e é o estado em que estamos atualmente constituídos, porque a situação, que Adão criou para si com a desobediência, passou a todos os seus descendentes, exceto à Santíssima Virgem Maria e Jesus Cristo.
Nossa situação
A existência do pecado original é das questões mais importantes para nós. Com isto compreendemos a nossa situação: mistura de aspirações elevadas e inclinações vergonhosas. Há em nós como dois homens. Até os pagãos sentem isto. O poeta latino Ovídio se admirava: “Vejo as coisas melhores, aprovo-as, e sigo as piores”.
Todos nos sentimos inclinados de mais para as coisas sensíveis, para as que nos agradam, mesmo que contrariem o que devemos fazer. É uma luta constante entre o homem espiritual e o homem animal.
Isto se nota desde a primeira infância, em todos nós, uns mais, outros menos. É a condição de todos os descendentes de Adão.
Para viver a doutrina
As nossas paixões (sensibilidade ou concupiscência), desorganizadas pelo pecado original, ficaram com a tendência a se desenvolver demais. No homem primitivo elas ocupavam o seu lugar, e prestavam os serviços necessários: não havia desordem. Agra, porém, crescendo, saem do seu papel, tomam o lugar da inteligência ou da vontade (1). Precisamos, portanto, manter sempre as paixões em seus próprios lugares, para o fim que Deus lhes reservou.
Como, porém, elas ficaram com tendência para crescer, para exorbitar, é necessário sustentá-las nos seus lugares. Isto nós só conseguimos dominando-as pela força do espírito. É a vontade que há de governar as paixões – e não as paixões que governarão a vontade.
Devemos exercer uma contínua vigilância, porque as paixões podem a cada momento saltar para além dos limites. Assim, como quem monta um cavalo bravo não pode descuidade das rédeas.
Quanto maior domínio exercermos sobre as paixões, tanto mais facilidade teremos em venc~e-las no momento preciso. Elas são como uma mola, que, constantemente exercitada, se torna de fácil e brando manejo.
Este exercício e governo das paixões é o que se chama – mortificação. A mortificação e, portanto, uma necessidade para podermos viver de acordo com a razão, a consciência e a fé; para sermos guiados pelas nossas tendências inferiores.
Mortificação é o esforço que fazemos para conservar a sensibilidade no seu lugar, como era no homem primitivo criado por Deus. Procuramos recompor a ordem que o pecado destruiu: é o trabalho da mortificação. Ela contém os exageros das paixões.
É impossível dominarmos as nossas más tendências sem isto. Eis porque nosso Senhor fez da mortificação uma exigência essencial: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo” (Mt 16, 24).
É verdade que, se não nos mortificarmos nas coisas lícitas, não nos saberemos conter nas ilícitas. Como também, se não nos mortificarmos nas coisas pequenas, não nos conteremos nas grandes. E, se não nos mortificarmos sempre, não nos saberemos mortificar quando for mais necessário.
É por isto que encontramos a mortificação voluntária tão praticada na vida dos santos, alguns dos quais iam até ao heroísmo. Eles sabiam que, quanto mais dominado e vencido o homem animal, tanto mais fácil a tarefa do homem espiritual.
A Doutrina Viva – Catecismo do Pe. Álvaro Negromonte, Editora Vozes, 1939.
Última atualização do artigo em 12 de janeiro de 2025 por Arsenal Católico