Dissemos que da soberba nasce a blasfêmia, filha tão malvada e até mais cruel, do que a própria mãe; inimigo terrível, e o que mais é, – duro, dificílimo de revelar ao médico espiritual, ou de descobri-lo na confissão, resultando daí que para muitos veio a ser causa de desesperação, consumindo-se a vítima na perda da esperança de livrar-se. Nem de outro modo o verme consome e corrompe o madeiro.
Este malvadíssimo espírito chega muitas vezes a aproveitar propositalmente o tempo da Sagrada Comunhão, para incitar-nos a blasfemar de Deus e dos sagrados mistérios que ali se administram. Daí se infere claramente que não é nossa alma quem fala dentro de si aquelas malvadas e intoleráveis palavras, e sim o demônio, inimigo de todos os bons, o qual foi por isso derrubado do Céu, onde se insurgiu contra Deus, proferindo contra ele palavras de blasfêmia e injúrias. Se fosse, em tal momento, nossas aquelas malvadas palavras, com se compadeceria com isto recebermos nós aquele dom do Céu, adorando-o e reverenciando-o? Como poderíamos nós juntamente amaldiçoar e bendizer? Muitos há a quem este perversíssimo enganador e destruidor das almas fez sair fora de si e perder o juízo; pois, como dissemos, não havendo pensamentos mais vergonhosos do que este, sendo assim dificílimo descobri-lo ao médico espiritual, muitas vezes veio a tornar-se um hábito. Bem fácil é compreender que nada fortalece mais aos demônios, e aos maus pensamentos, do que tê-los encobertos, sem revelá-los ao mestre de nossa alma.
Ninguém atribua a si a causa das palavras de blasfêmia que profere; pois, aquele Senhor, que é conhecedor dos corações sabe muito bem que estas invenções e palavras não são nossas, mas de nossos inimigos. A embriaguez algumas vezes é causa de atos desastrosos; a soberba muitas vezes é causa destes pensamentos. Ora, aquele que, tomado do vinho, praticou algum ato desastroso, não será castigado pelo que fez, mas pela causa porque o fez; e isto mesmo acontece à blasfêmia, que algumas vezes procede da soberba, como já está dito.
Quando estamos orando, então é que principalmente nos perturbam estas fantasias e pensamentos; e, acabada a oração, logo se vão, porque não soem perturbar senão aqueles que pelejam contra eles. Este espírito mau não se contenta de blasfemar de Deus e de todas as coisas divinas, mas também fala intelectualmente dentro de nós algumas sujíssimas palavras; e isto faz, ou para que deixemos a oração, ou para derrubar-nos em alguma desesperação. Por este caminho apartou ele a muitos da oração e também da Sagrada Comunhão; a outros, enfraqueceu seus corpos com o espírito de tristeza, e a outros com demasiados jejuns sem dar-lhes jamais descanso. E isto o faz, não só entre os homens do século, como entre os da vida monástica, fazendo-lhes crer que nenhuma esperança lhes fica de salvação, e que são piores e mais miseráveis que todos os infiéis e que os mesmos gentios.
Aquele que é tentado deste espírito de blasfêmia, e deseja livrar-se dele, tenha por certo que não é sua alma a causa destes pensamentos, mas aquele sujíssimo espírito que teve o atrevimento de dizer ao Senhor: Tudo sito te darei, se caindo em terra me adorares. E, por isso, também nós outros, não fazendo caso das coisas que ele diz, seguramente e sem temor digamos: Aparta-te de mim, Satanás; somente a meu Senhor adorarei e a Ele só servirei; tuas palavras e teus maus intentos se volvam contra ti; e tua blasfêmia caia sobre tua cabeça no presente e no futuro século. Aquele que por outro meio quiser pelejar contra este espírito d blasfêmia, será semelhante ao que quiser deter um relâmpago com as mãos; pois, com resistir ou lutar contra aquilo que subitamente passa, como vento, por nosso coração, diz uma palavra em um momento, e já desaparecer?Os outros espíritos perseveram, detém-se e dão tempo aos que pelejam contra eles; maus, este, pelo contrário, logo que aparecer desaparece, e, falando uma palavra, logo passa.
Soe este perverso espírito deter-se mais nas almas dos homens puros e simples, porque estes se perturbam e estremecem com tais pensamentos; e, por isso, cremos que padecem disto, não por soberba, mas por inveja dos demônios. Se deixarmos de julgar e condenar o próximo, menos teremos os pensamentos de blasfêmia, porque essa é uma das raízes e causas desta tentação. Assim como quem está encerrado em sua casa ouve as palavras dos que passam pela rua, mas não fala com eles, assim a alma que mora dentro de si mesma, ouvindo as palavras de blasfêmia que o demônio fala ao passar por ela, perturba-se e estremece, conquanto não seja ela quem as fala. Aquele que despreza este espírito mau e não faz caso dele, esse o vencerá; mas, aquele que de outro modo se quer defender (especialmente se o teme muito), quanto mais o temer, mais vezes será por ele inquietado, porque o mesmo temor despertará muitas vezes esta tentação. Quem quiser com palavras vencer este espírito, e semelhante a quem quiser ter encerrados os presos os ventos.
Um monge virtuoso foi muito tentado deste espírito por espaço de vinte anos; e, durante este tempo, nunca deixou de macerar sua carne com jejuns e vigílias. E, como com esta medicina não achasse remédio, escreveu uma carta a um santíssimo velho, descrevendo a sua doença, entregando-lh’a de mão própria, prostrado a seus pés, sem mirar-lhe o rosto. Depois que o santo velho leu a carta, sorriu; e, levantando-o do chão, disse-lhe: – Põe, filho meu, tuas mãos sobre meus ombros. E, como o Religioso assim o fizesse, disse-lhe o velho: – Sobre mim caia este pecado, filho meu, todo o tempo que te combateu e que daqui por diante te combater, contanto que nenhum caso faças dele. Com estas palavras, de tal maneira cobrou esforço e alento o religioso, que, antes de sair da cela do velho, já a tentação se tinha desvanecido. Isto me foi contado pelo próprio a quem tal acontecera, dando graças a Deus por este benefício.
Clímax ou Escada do Céu, Livro escrito originalmente em grego, por São João Clímaco, Abade do Monte Sinai; traduzido para o português, por João Mendes de Almeida Júnior, Irmão terceiro da Ordem Franciscana Lente Catedrático da Faculdade de Direito de São Paulo, 1902.
Última atualização do artigo em 15 de março de 2025 por Arsenal Católico