Deus não impõe ao cristão uma renúncia absoluta às criaturas, mas aconselha-a a fim de que a sua vontade, o seu beneplácito, a sua glória sejam o seu único amor. Não lhe manda vender tudo o que possui, dá-lo aos pobres e segui-lo, mas aconselha-o. “Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu, e depois vem e segue-me” (Mat. 19, 21). Não manda renunciar ao matrimônio, mas aconselha-o como algo mais perfeito para aqueles “a quem foi dado compreender isto” (Mat., 19, 21). Aconselha a servir com humildade: “Quem for maior, entre vós, seja servo dos outros” (Mat., 23, 11). “Quando fores convidado, vai e senta-te no último lugar” (Luc., 14, 10). “Não vos preocupeis, dizendo: que beberemos, que comeremos ou que vestiremos? Os pagãos afadigam-se com tudo isso; mas o vosso Pai celestial conhece as vossas necessidades; buscai primeiro o reino dos céus, e o restante ser-vos-á dado por acréscimo” (Mat., 6, 31-33). “Fazei ai próximo o que quiserdes que vos façam a vós próprios”. (Mat., 7, 12). “Não resistais ao mal, e se alguém vos esbofetear a face direita, oferecei-lhe a esquerda; e a quem quiser questionar contigo para te tirar a túnica, dá-lhe também o manto, e se alguém pedir para percorreres uma milha com ele, percorre duas. Dá a quem pede e não voltes as costas a quem te pedir emprestado” (Mat., 5, 39-42). O Senhor não ordena estas coisas, simplesmente é do seu inteiro agrado que se façam.
Para cumprir a lei, basta fazer o que está mandado; se o cristão observa os mandamentos, não comete nenhum pecado. Mas para além do que não pode ser feito ou omitido sem pecado, sem ofensa a Deus, abre-se às suas aspirações o vasto horizonte das coisas que não estão ordenadas, mas somente aconselhadas ou recomendadas, que não somente são boas, mas melhores; que se não enquadram já nos estreitos limites do mandamento, mas pertencem á vida da perfeição.
Nestas alturas, já não há lugar para atitudes de tibieza perante o pecado venial e os defeitos; há apenas a vida interior, o desejo ardente de fazer todo o bem possível sempre que se proporcione a ocasião, o bem para o qual o cristão se sinta atraído interior ou exteriormente, exercitando-o coma maior renúncia e dedicação possíveis; o desejo ardente de não desperdiçar nem uma parcela de todo o bem que possa fazer, de se não poupar a fadigas para praticar qualquer ação com o maior esmero.
Nestas cumiadas, reina “o ardor da caridade”, daquela caridade que ama verdadeiramente a Deus sobre todas as coisas, e tão sinceramente, tão intimamente que exclui tudo o que poderia desagradar a Deus ou agradar-lhe menos, e incita eficazmente a alma a realizar o que lhe trouxer mais glória.
É aqui que se descobre à alma o vasto das imperfeições. O cristão age imperfeitamente quando cumpre, sim, o que está preceituado, mas ao mesmo tempo abandona aos que querem ser mais perfeitos quanto excede os limites da simples obrigação.
Age ainda com imperfeição sempre que faz o que é justo e bom mas sem o cuidado e a delicadeza que devem caracterizar uma alma que se propõe elevar-se espiritualmente cada vez mais, dia a dia. Poderíamos, deveríamos fazer melhor o que já fazemos bem: orar, estudar, obedecer, etc. Mas fazemos o bem menos perfeitamente do que somos capazes ou, o que é a mesma coisa, não fazemos todo o bem que poderíamos fazer.
Cada dia o cristão pode desfear a sua alma com novas imperfeições. possui a graça santificante e, por isso, as suas ações ou são pecaminosas ou moralmente boas, meritórias e agradáveis a Deus, já que na prática não há termo médio; no decurso do dia, as ocasiões de pecar venialmente sãos em comparação muito mais frequentes que as de praticar o bem.
As boas ações que o cristão vai encontrando no decorrer do dia são, pouco mais ou menos, a oração, o trabalho, as obras de caridade, a mortificação, o sofrimento. A toda esta cadeia quase ininterrupta de boas obras pega-se o mofo das imperfeições, raras vezes se praticam com tal elevação, com tal ardor e tal pureza de intenções que se não possam fazer melhor, com mais atenção, com uma intenção mais reta, com um amor de Deus mais intenso. As mais das vezes, os atos sobrenaturalmente bons, como a oração, a obediência, a mortificação, a obrigação de amar o próximo e ainda os inimigos, as práticas religiosas de todos os gêneros, realizamo-las, não tanto incitados por um amor perfeito de Deus, quanto por um amor imperfeito, isto é, pelo temor ao castigo, pela esperança dum prêmio, para atrair a bênção do Senhor. Procuramos Deus, é certo, mas para satisfação nossa, porque nele encontramos felicidade. E, assim, privados da caridade pura, muitos dos nossos atos manifestam uma excessiva imperfeição.
As ações naturalmente boas como, por exemplo, o trabalho, as obrigações familiares ou profissionais, o comer, o descansar, o estudo, nem sempre estão animados daquele espírito de fé e pureza de intenção que são necessários para os sobrenaturalizar. Melhor, procedem do nosso modo de ser, julgar e pensar, simplesmente humanos. Esta maneira de agir provoca sempre uma cadeia de imperfeições. às vezes sentimo-nos induzidos a fazer algumas coisas boas, a rezar por exemplo; preferimos, porém, qualquer outra coisa que, embora igualmente boa em si mesma, é naquele momento uma ocupação desnecessária, apesar de não podermos esquivar-nos ao sentimento de que seria muito melhor seguir a inspiração da oração. È assim que muitos dos atos bons se transformam em atos imperfeitos.
Uma fonte inesgotável de imperfeições é, por último, o mau costume de não apontar antes de tudo a mira das ações para Deus, para o seu beneplácito, para a sua glória, par a sua vontade; pelo contrário, fixamo-la em nós próprios. Acostumamo-nos a julgar os acontecimentos, as experiências e até os homens, em primeiro lugar sob o nosso ponto de vista pessoal: julgamos boa uma coisa se nos parece apetecível; chamamo-la má se não coincide com os nossos desejos; não nos interessa saber se é ou não agradável ao Senhor. Comportamo-nos como se nos esquecêssemos totalmente d’Ele, por estarmos concentrados em nós. E isto mesmo nos ocorre na oração e na frequência dos sacramentos: chamamo-los bons, quando sentimos prazer e nos trazem consolação. Sempre o “eu” em primeiro lugar. E o Senhor? Desta disposição procedem todos os dias inúmeros atos imperfeitos que poderiam e deveriam desaparecer.
São muitas as imperfeições que adulteram o bem que fazemos. No entanto, atribuímos pouca importância ao fato. Esta indiferença é um grande obstáculo ao progresso espiritual. “É evidentemente impossível progredir na vocação enquanto não forem aniquiladas essas imperfeições” (Cfr. “Subida do Monte Carmelo”, Livro I, Cap. II).
A Vida Espiritual, Benedikt Baur, Lisboa, 1960.
Última atualização do artigo em 16 de março de 2025 por Arsenal Católico