O Padre e o orgulho

II. O Padre na luta contra os vícios

O Padre e o orgulho

Humilia te in omnibus et coram Deo invenies gratiam.

Humilha-te em tudo e encontrarás graça diante de Deus. (Ecl., 3, 20).

O orgulho ou soberba é um sentimento, que nos faz ter por mais do que somos. Somos ignorantes e queremos passar por sábios; somos pobres e queremos passar por homens ricos; somos pecadores e queremos passar por santos; somos de terra e família obscura e queremos passar por oriundos de lugares e famílias célebres. Esta estultícia mais de uma vez a condenou o divino Mestre, que diz do orgulhoso, que tem por pai o demônio: Vos ex patre diabolo estis. (Jo. 8, 44) Quando os Apóstolos se apresentaram depois de uma missão e contaram envaidecidos os milagres, que tinham operado, disse-lhes: “Vejo a Satanás caindo do céu como um raio”. Lembrando-lhes que a soberba foi a causa de sua queda. A Sagrada Escritura mencionando os tristes lamentos dos condenados no inferno, apresenta, como primeira causa de sua condenação, a soberba: Quid nobis profuit superbia? (Sap., 5, 8) Que nos aproveitou a soberba?

São Jerônimo para nos fazer ver a fatuidade de tal sentimento, diz: “A glória, porque o orgulhoso tanto se afadiga, é semelhante à sombra, que segue o homem, quando foge dela, e que foge do homem quando este a persegue”. Fizeste uma boa obra? um discurso flamante? uma composição original? Não vás à procura da sombra de sua glória, porque ela fugirá de ti. Oculta-a e foge de a publicar, porque ela te seguirá, e os que a vierem a conhecer te louvarão por ela.

A soberba, diz São João Evangelista, é uma das três concupiscências, que há no mundo. Por ela o homem se considera Deus de si mesmo, senhor absoluto de suas faculdades, regulador autônomo de seus sentimentos e paixões. Esquece-se que Deus é o seu primeiro princípio e último fim, julga-se isento de toda a lei, e um ser independente que não tem que dar conta a ninguém de seus atos.

Esta soberba da vida, que São João viu no mundo, manifesta-se na ânsia incontida, com que os homens procuram os primeiros lugares na política, no comércio, na indústria, na ciência, na glória, em tudo, enfim, que no mundo tem ares de grandeza e superioridade.

Na mente de Santo Inácio a soberba ocupa o último grau de perversão humana. na meditação das Duas bandeiras, na arenga que o demônio faz aos seus prosélitos para perder os homens, aponta-lhes três degraus: levá-los ao amor das riquezas, das honras e daí a uma grande soberba, que servirá de trampolim para os precipitar em todos os vícios. De fato, o demônio tudo espera do orgulhoso. Não há pecado, em que o não faça cair: desobediência às leis de Deus e da Igreja, intemperança no comer e beber, incontinência, maledicência, vingança, avareza, desprezo dos pobres e mil outros pecados, que têm por mãe a soberba.

Segundo São José de Calazâncio, o soberbo torna-se joguete do demônio e partidário de todos os seus malefícios para perder as almas. O demônio manobra com a pena do escritor para difundir a má doutrina; com a língua do orador para atacar os dogmas da Igreja, difamar o clero e desprestigiar a virtude; com os empresários de cinema, para corromper a mocidade; com as casas de modistas, para inventar figurinos de indumentária irreverente e contrária à modéstia cristã.

Mas São Paulo desmascara suas protervas intenções e o orgulho que ocultam em todas estas manobras diabólicas: “Julgando-se sábios, diz, caíram na demência”. (Rom., 1, 22) Demência em combater contra Deus, contra a Igreja, contra a fé, contra a virtude, que nenhuma força pode abalar, que nenhum poder humano ou satânico pode destruir.

E para concluir esta série de testemunhos, vem a confirmá-los o de São Tomás, que diz, que o orgulho é o amor e desejo da própria excelência. (11, 11, 162) Pode alguém possuir uma certa excelência e superioridade em talento intelectual, em virtudes morais, em aptidões políticas e sociais, que, atraíam a estima e louvor do público, no que não é censurável, se tem em vista só a glória de Deus, a quem se deve toda a honra e louvor; mas, se nisto se compraz excessivamente e se atribui a si todo o bem que possui, revela uma grande soberba, pois “que é que tens que não recebestes?” Quid habes quod non accepisti? (1 Cor., 4, 7)

Os Santos distinguem duas espécies de orgulho: o orgulho diabólico manifesta-se pela resistência a toda a autoridade, ou divina ou humana, e não se quer sujeitar a nenhuma lei; quer ser livre como Lúcifer, que disse a Deus num auge de insensatez: Non serviam! Não servirei! O orgulho humano caracteriza-se pela complacência que tem cada um de si mesmo, julgando-se pelas menores vantagens superior aos outros, chegando até a desprezá-los e ridicularizá-los por menos aptos para os negócios e traficâncias do comércio.

O orgulhoso desta classe julga que tudo pode, de nada duvida, lança-se em empresas difíceis e temerárias, confia que ninguém o enganará nas suas artes, nem descobrirá suas falcatruas, que está seguro do resultado dos empreendimentos e que não precisa do recurso a Deus e à oração para sair deles com vantagem.

O orgulhoso desta espécie é pertinaz em suas ideias, prefere seus modos de ver aos dos outros, não cede de sua opinião, não quer ouvir observações sobre seus atos, replica à menor censura, escusa-se, desculpa-se, quer ser e viver independente, seguir a sua vontade, e, se alguma vez é necessário obedecer, fá-lo contrariado, com tédio e resmungando.

Ao orgulho anda unida a jactância. O orgulhoso quer que todos falem de si, que lhe dêem o primeiro lugar nos aplausos, que o louvem por tudo que faz, e, à falta doutros, ele se faz panegirista de si mesmo. Provoca aplausos no meio de seus discursos e quer que todos o felicitem pelo bom êxito de seus trabalhos.

A ambição é outra feição da soberba. O orgulhoso aspira a engrandecer-se, a subir em dignidade e empregos honoríficos, julga-se com direito a eles e não tem receio em atropelar as leis da justiça e da honestidade para os obter.

o orgulhoso chega a ser hipócrita. Para se manter em destaque dos outros, oculta sua baixa descendência e se dá por homem de estado, de alta categoria social, de via impoluta, e para conservar esta falsa reputação, não duvida mentir e fazer certas reticências, até mesmo no tribunal da penitência. É, pois, muito verdadeira a palavra do Espírito Santo, que diz que a soberba é a origem de todos os vícios e pecados: Quoniam initium omnis peccati, superbia. (Ecl. 10,15)

Ouçamos o Pe. Vieira sobre esta matéria: “O orgulho é uma injustiça, é uma insolência, é um vício odioso ao céu e à terra; é um princípio de condenação; é a origem de todos os pecados; é o obstáculo a todas as virtudes; é a inquietação do espírito, é o mal de todos os males”.

E Santo Agostinho, prolongando ainda mais esta ladainha, diz que a soberba é a madrasta das virtudes, é a mãe dos vícios, é a porta do inferno, é a mestra do erro, é a cabeça da serpente malígna, é o princípio de todas as iniquidades.

E São João Clímaco vem reforçar com novo subsídio estas já tão numerosas características da soberba, e diz que ela é a autora dos juízos temerários, é a porta da hipocrisia, é a origem da cólera, é o endurecimento do coração, é a marca da esterilidade da alma, é a causa das mais desoladoras quedas.

Finalmente, Santo Afonso, aduzindo as palavras da escritura, que diz que o soberbo é objeto de abominação aos olhos de Deus: Abominatto Domini est omnis arrogans, (Prov. 16, 5), diz que o orgulhoso é ao mesmo tempo cego, mentiroso e ladrão. Cego, porque não vê o seu nada, a sua miséria, os seus pecados, a terra de que é formado e o pó em que se há de converter. Mentiroso, porque nega o que ele é na realidade, pobre, fraco e ignorante. Ladrão, porque rouba a Deus a glória, que se atribui a si pelas suas qualidades, sendo que toda a glória e todo o bem a Deus pertence, e a Ele só deve ser referido.

Efeitos do orgulho

O orgulho afeta o nosso corpo, O pecado, que perdeu nossos primeiros pais, ficou tão arraigado na natureza humana, que destruiu nela a paz entre a carne o espírito, e estabeleceu a revolta das paixões. O corpo ficou debaixo do domínio da sensualidade, e portanto com repugnância a carregar a cruz do sofrimento, a curvar-se ao jugo da lei de Deus e a suportar a menor incomodidade. Insurge-se contra a enfermidade, que o prostra num leito de dores, fazendo-o passar por humilhações, que lhe abatem todos os fumos de grandeza e superioridade.

Ainda que tudo recebe da alma, vida, movimento, beleza, vigor, não se reconhece inferior a ela, mas quer ser ele o senhor e exige que ela lhe faça todas as vontades e consinta em todas as depravações. Sendo ele mortal e ela imortal, sendo ele terra e ela espírito, quer usurpar as rédeas do comando, expondo-se, a si e a ela, á condenação eterna.

E que remédio para obstar a tão grande mal? Eu penso que o mais eficaz é este: citar com frequência nosso corpo ao tribunal da morte e meditar aí qual será a sentença que o divino Juiz há de proferir contra ele. Pensar, em seguida, diante da sepultura, que toda a flor é feno e que toda a carne é cinza. Que não há porque, engrandecer um corpo, que será pasto dos vermes e que ficará sem memória no campo dos mortos. Os corpos, que seguraram na mão cetros e na cabeça coroas, serão tão humilhados que ninguém os distinguirá, na sepultura, dos mendigos mais andrajosos.

o orgulho afeta nossa alma.

A alma tem, como o corpo, suas pretensões viciosas. Cônscia da própria excelência, quer ser honrada, acatada e engrandecida. Desvanecida, pelas belas qualidades de talento, de inteligência, de raciocínio, de espiritualidade, gosta de se comprazer nestas prerrogativas e de se endeusar nelas, como sucedeu com Lúcifer, que se quis fazer semelhante ao Altíssimo.

Esquecendo-se que estas qualidades lhe foram outorgadas por Deus, para as empregar em seu serviço e confessar com elas o seu supremo domínio, deixa-se envaidecer pelo seu brilho, e, cega pelo orgulho, levanta o grito luciferino de revolta e insubordinação, e se crê senhora autônoma de sua razão.

imbuída destes princípios, a alma chega até a atribuir-se os bens da graça, que são inteiramente gratuitos, e dos quais nada tem de que se orgulhar, como não tem de que se orgulhar o pobre por um vestido novo, que recebeu de presente. A soberba a faz esquecer, totalmente, de sua condição de criatura e de sua absoluta impotência para obter a salvação, pois lá está Jesus Cristo a dizer-lhe: Sine me nihil potestis facere. Sem mim nada podeis fazer, que vos aproveite para a salvação. (Jo. 15, 5)

Sem a graça de Deus nem uma ideia santa e elevada, nem um pensamento salutar, nem um ato de fé, de esperança e de caridade pode a alma formar por si mesma. Não tem, pois, motivo nenhum para se orgulhar, mas muito para se humilhar diante de Deus e dizer-lhe com o profeta: “Senhor, sou vosso servo, dai-me entendimento do meu nada”. (Sal. 118, 125)

Destas pretenções enganadoras e ilusórias pulula da alma uma multidão de rebentos malditos do vício abominável do orgulho: ódio, inveja, cólera, dobrês, susceptibilidade, ressentimentos, rancores, aversões, e tantos outros de que já falamos. onde, porém, a soberba se sente mais ferida é nas repreensões, censuras, contradições das próprias ideias, nas confusões e humilhações públicas, em que o sentimento da própria excelência e do egoísmo estua no coração e faz subir o rubor às faces.

E que remédio para tanta desordem?

O melhor seria citar, de novo, a alma para o tribunal do divino Juiz e ouvir a sentença, que, um dia, proferirá contra os orgulhosos: Servos iníquos, porque vos envaideceis com o que não é vosso? Por que transgredis as minhas leis por um orgulho fanático, que vos cega, e por um egoísmo fátuo, que vos eleva acima do que sois? Que seria de vós, se minha misericórdia não vos tivesse valido?

Olhai para o inferno e ouvi os gritos que lá soltam os condenados: “Que nos aproveitou a soberba?” – E a consciência lhes responderá: “A eternidade de tormentos”! – O inferno foi criado para castigar o pecado de orgulho cometido pelos anjos rebeldes, e continua sendo o lugar, onde vão parar todos os orgulhosos, que vivem numa contínua revolta contra Deus pelo desprezo de sua lei, de sua Igreja e de seus sacerdotes.

Combate ao orgulho

Ainda que já apresentei os meios particulares de combater o orgulho do corpo e da alma, vou agora passar em revista os meios mais gerais, que ajudarão a debelar, por completo, vício tão prejudicial à nossa salvação.

E primeiramente, seguiremos o exemplo de Jesus Cristo, que foi inexorável com os orgulhosos. Ele estigmatizou, por muitas vezes, o orgulho dos fariseus, declarou que os mistérios do reino de Deus ficariam ocultos aos soberbos; que o orgulho paralisava a oração e fechava a porta do céu; que todo aquele que se exalta, será humilhado: premuniu os Apóstolos contra todo o pensamento de ambição, de vaidade e de vanglória perante os sucessos de seu apostolado. Ensinou-lhes que o discípulo não é mais que seu Mestre, que veio á terra não para ser servido, mas para servir.

E não ficou só em palavras, mas desceu à prática. Quando fazia algum milagre mais estrondoso, impunha silêncio ao miraculado; quando após o milagre da multiplicação do pão O quiseram aclamar rei, fugiu para o monte a orar; quando se transfigurou no Tabor diante de três discípulos, mandou-lhes que nada dissessem até à sua ressurreição.

O que ensinou o Mestre, ensinaram seus discípulos.

Santo Inácio, apontando os meios para combater as paixões, diz assim: “Devem-se combater as tentações com os seus contrários, como quando um é inclinado à soberba, deve ser exercitado em ofícios baixos, que muito ajudarão para o humilhar”. – este meio é de uma alta psicologia e conhecimento do coração humano. Nele está a síntese de todos os meios para combater a soberba. Esta é a pedra com que havemos de derrubar o Golias de todos os vícios.

Este meio adotou um dos mais aplicados discípulos de Inácio, São Francisco de Borja, que, para cerrar a porta a pensamentos altivos, chamava-se o maior pecador do mundo.

Um dos mais eficazes meios para combater a soberba é a confissão. Ali se quebram todas as pontas do orgulho; ali o homem se confessa pequeno, fraco, ignorante; ali se abatem todos os pensamentos altivos, e cada um tem de confessar a sua humilde condição de pecador, de delinquente, de criminoso, de réu perante o tribunal da divina justiça. O homem, que se confessa com frequência, não pode ser orgulhoso. Quando ele se resolve a ir ajoelhar-se aos pés do confessor, vai de cabeça baixa, olhar modesto, numa atitude humilde, que desterra toda a ideia de orgulho e presunção.

A oração, feita como deve ser, é outro meio muito vantajoso para combater a soberba. O homem que ora, que ora com fé, com fervor, com perseverança, não pode ser orgulhoso. O homem que se ajoelha para orar, que levanta as mãos ao céu, que bate no peito, que se inclina diante do Todo-Poderoso, está possuído do sentimento de humildade, confessa a sua dependência de Deus, revela-se uma alma pequena, que precisa de quem lhe dê auxílio, de quem a socorra numa necessidade, em que não pode ajudar-se por si mesma.

Outro meio é a reação.

Como nossa natureza nos leva, constantemente, a buscar-nos a nós mesmos, é necessário reagir contra esta tendência, lembrando-nos de que nós mesmos não somos mais que pó e cinza, fraqueza e ignorância. Há em nós, sem dúvida, qualidades naturais e sobrenaturais, que sinceramente devemos estimar e cultivar: mas como estas qualidades vêm de Deus, não é, porventura, a Deus que devemos glorificar? Quando um artista sai a público com uma obra prima, a quem se devem os elogios, à tela, ou ao seu autor? É por isso que São Paulo nos manda referir tudo a Deus, reconhecendo que Ele é o autor de todo o bem, e que, assim como é o princípio de todas as nossas ações, deve ser também o seu último fim. “Que é que tens que não recebesses? E, se o recebeste, como te glorias, como se o não recebesses?”

O Homem de Deus, Conferências para o Clero, Cap. II, pág. 93, 1953.

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