“Reconheço as minhas culpas, e o meu pecado está sempre diante de mim” (Salmo 50, 7).

“Para isto nos escolheu Ele antes da constituição do mundo: para que fossemos puros e imaculados diante da sua presença” (Efés. 1, 4), mediante a posse da vida divina e a participação na mesma.

Cada dia deveríamos agradecer de novo esta vida divina, possuí-la e vivê-la com mais perfeição até que a possamos viver mais tarde, com perfeição absoluta, na visão beatífica de Deus: ali “seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal qual é. E quem tiver esperança nEle, santifica-se como Ele é Santo” (I João, 3, 2-3).

Refletiu-se na nossa alma esta luz pela primeira vez no batismo. Depois de nos batizarmos, ao impor-nos a veste branca, símbolo da graça que nos foi conferida, disse-nos a Igreja: “Recebe esta veste branca e conserva-a imaculada até ao trono do juiz divino”.

Consideremos, pois, o dom divino que recebemos no batismo, e examinemos até que ponto conservamos limpo através da vida o imaculado véu batismal.

A realidade do pecado

Deveríamos conservar através da vida a veste branca da graça, o trajo brilhante da adoção divina. Foi o que fizemos durante alguns anos: os anos da meninice. Mas mal chegamos à idade em que podíamos conhecer e discernir o bem do mal, insinuou-se o pecado no paraíso do nosso coração jovem, e pecamos: pecados leves, pecados maiores, pecados graves: pecamos muito.

Sobram-nos motivos para orar incessantemente: “Perdoai-nos as nossas dívidas”, miserere mei Deus, “compadece-te de mim, ó Deus; segundo a tua piedade, segundo a magnitude da tua misericórdia, apaga a minha iniquidade. Contra ti, só contra ti, pequei, fiz o mal diante dos teus olhos” (Sal. 50, 3-6). Temos sido o filho pródigo que abandonou a casa paterna para ir a um país estranho: “Depois de ter gasto tudo, sobreveio uma grande fome naquela terra e começou a sentir necessidade. Voltando a si, disse: levantar-me-ei, irei ter com meu pai e diz-lhe-ei: Pai, pequei contra o céu e contra ti” (Luc. 15, 13-19).

E tudo isto, apesar dos meios incomensuráveis que temos tido ao nosso alcance para conservarmos intacta a veste batismal; apesar dos ensinamentos recebidos através da vida, apesar das numerosas inspirações, das admoestações e exercícios espirituais, confissões e bons propósitos; apesar da participação, talvez diária, no santo sacrifício e na comunhão.

“Pai, pequei contra o céu e contra ti”: “Compadece-te de mim, ó Deus; segundo a tua piedade e segundo a magnitude da tua misericórdia, apaga a minha iniquidade. Lava-me dela cada vez mais e limpa-me do meu pecado. Pois reconheço a minha culpa, e o meu pecado está sempre diante de mim. Contra ti só, contra ti pequei e fiz o mal diante dos teus olhos. Asperge-me com o hissopo e serei limpo; lava-me e ficarei mais branco do que a neve” (Sal. 50, 3-6-9).

Assim como o caminhante que percorre veredas abertas não pode evitar que se lhe prenda o pó nas sandálias, assim diariamente se deposita na nossa alma o pó do pecado. “Nada há de que me possa gloriar; antes, há muitas coisas por causa das quais me devo prostrar em terra, porque sou fraco e inconstante” (imit. de Cristo).

O alcance do pecado

Para saber valorizar verdadeiramente o pecado, devemos primeiro tentar compreender quem é Deus, já que o pecado é a negação de Deus: um atentado contra a sua própria essência, contra o seu amor e santidade, uma violação dos seus supremos e inalienáveis direitos. O pecado afasta-nos de Deus, que é a vida, e projeta-nos num abismo de humilhação tanto mais profundo e de miséria tanto mais íntima quanto mais sublime, grande elevada é a nossa vocação de partilhar com Deus a sua vida.

O pecado dirige-se em primeiro lugar, contra Deus: é uma ofensa ao Senhor – “Eu sou o Senhor, teu Deus” – a quem devemos referir todas as coisas e servir exclusivamente e sempre.

Que fazemos ao pecar? na realidade, apreciamos as coisas conforme servem ou não para a satisfação das nossas paixões, especialmente do orgulho e da sensualidade. As forças físicas e morais foram-nos dadas para vivermos só para Deus e para a sua glória, e nós, ao contrário, pomo-las ao serviço dos nossos objetivos pessoais, contrariando a vontade e os preceitos divinos. Referimos as coisas a nós e não a Deus, e fazemo-las escravas das nossas ambições; procuramos a nossa glória e a nossa vontade em vez da dEle. Preferimo-nos a Deus, colocamo-nos acima dEle: primeiro nós, depois Deus. Pomos junto a Deus, mesmo acima de Deus, um ídolo: o ídolo do nosso eu, do dinheiro, dos interesses, do trabalho, da honra: o ídolo de um prazer, duma amizade, dum gozo vão. Preferimos uma criatura ao Criador, considerando-la praticamente acima dele: “tu és o meu tudo, tu és o meu deus, eu vivo para ti”. “O meu povo trocou a sua glória por um ídolo. Pasmai, ó céus, com isso, e horrorizai-vos, diz o Senhor” (Jer., 2, 10-12 ).

O pecado é desobediência a Deus, violação consciente dos seus preceitos. “Eu sou o Senhor, teu Deus”. Ele tem o direito de mandar, e as suas prescrições são lei. Ao pecar, retiramos a Deus a obediência devida, menosprezamos a vontade e a lei do Altíssimo, pisamos os seus mandamentos e queremos seguir o nosso próprio caminho. “Não te servirei” (Jer., 2, 20).

O pecado é ingratidão. Com o seu amor misericordioso, livrou-nos Deus da condenação eterna, adotou-nos como seus filhos muito amados em Jesus Cristo, e derramou boas sementes no prado da nossa alma. E nós pecamos. Não desfrutamos dos nossos dons naturais e sobrenaturais, dos dons da fé, dos sacramentos, próprios do estado de cristãos. Antes abusamos deles. Servimo-nos das forças do espírito e do corpo, da saúde dos membros e dos sentidos, não para dar glória a Deus e para cumprir em tudo a sua vontade, vivendo só para Ele, mas para o enfrentarmos e ultrajá-lo. “Que mais podia eu fazer pela vinha que não tivesse feito? Como, esperando eu que desse uvas, deu abrolhos?” (Is., 5, 4).

O pecado é dirigido contra Cristo, Senhor e Salvador. Para nos arrebatar do pecado e da miséria, baixou à terra o Filho de Deus, que veio para “salvar o que estava perdido” (Mat., 18, 11). Como nos ama, quanto sacrifício desde o presépio até á Cruz! Por nós, por cada um de nós, sofreu tudo isso, somente para obter a graça da adoção divina e as incontáveis graças de que vamos precisar. Nós, em recompensa, pecamos e desprezamos todos os seus sacrifícios. E a dor mais aguda da agonia em Getsemani foi esta: Ele previu, com clarividência divina, a ingratidão com que lhe iríamos corresponder: “Meu povo, que mal te fiz eu, em que te desgostei? Responde-me. Porque te libertei da escravatura do Egito, ofereceste-me uma cruz; porque te conduzi através do deserto, alimentando-te com o maná celestial (dando-te uma pátria onde corre o leite e o mel) preparaste a cruz para o teu Salvador? Eu te cumulei com o meu poder, e tu, em recompensa, cravaste-me na cruz. meu povo, que te fiz eu, em que te desgostei? Responde-me!” (Impropérios de Sexta-Feira Santa). Que podemos responder senão isto: Sim, pagamos o teu amor, não com uma correspondência fiel, mas com vil ingratidão!? E a ingratidão dói tanto!

É o pecado o que esteriliza em nós a obra da redenção, o que impede que cresça e prospere na alma a boa semente das inspirações e dos estímulos da graça: tanto o pecado grave como o venial. É verdade que, enquanto cometermos somente pecados veniais, estamos em graça de Deus, e seguimos pelo reto caminho, mas as pequenas infidelidades e as numerosas faltas impedem-nos de andar com desembaraço: a vida interior não prospera, as graças não produzem os efeitos desejados.

É que pomos obstáculos insuperáveis à obra de redenção e santificação que o Senhor quer consumar em nós, com a sua ação e os seus sacramentos; somos o terreno pedregoso em que a boa semente da graça não pode fixar as suas raízes. E assim esterilizamos a obra da redenção em nós e nos outros.

O pecado prejudica-nos também a nós próprios, é a maior desgraça que nos pode suceder. Podendo conviver com Deus, ao cometer um pecado grave deixamos de alimentar semelhante vida. Das alturas da posse de Deus, precipitamo-nos no abismo do seu afastamento. E, no que nos toca, separamo-nos, excluímo-nos da vida divina: já não somos filhos de Deus, somos filhos da ira; já não somos sarmentos vivos da vida que é Cristo, mas sarmentos secos.

E só faltará que a morte corte a última fibra que nos mantém ainda unidos À vida, para cairmos para toda a eternidade nas trevas onde haverá “choro e ranger de dentes”. Deus, que tanto nos amou em Cristo, tem de nos expulsar para sempre do seu seio, e perdido Deus, tudo está perdido. O pecado traz consigo o seu castigo: esse remorso atormentador que persegue, dia e noite, o pecador, sempre a reprimenda causticante e a angustiosa pergunta: “como acabará tudo isto”? Se o infeliz não volta ao Pai, a sua desgraça toma-se ainda maior, com a subversão da consciência, a cegueira da razão, o relaxamento da vontade, o endurecimento do coração, o enfraquecimento inesperado do caráter, a perversão da natureza, e, em consequência, o medo da morte. Estes são os caminhos do pecado, cá na terra; se a graça de Deus não intervém, misericordiosa, levam inevitavelmente á exclusão definitiva da vida divina e da visão de Deus: o inferno – eterno afastamento de Deus, afastamento de todo o bem; afastamento de toda a felicidade e de toda a alegria. Só infelicidade, ódio e amargor por toda a eternidade.

O pecado repercute também na vida da comunidade: na família, na paróquia, na Igreja, na humanidade. Todo o pecado é um mal para a comunidade: se um membro está doente, todo o organismo se ressente; se um sarmento é estéril, já a vide não dá todos os seus frutos. Ninguém vive isolado, ninguém vive só para si, ninguém, pecando, se prejudica só a si; isto sem falarmos do escândalo que ordinariamente anda unido a todo o pecado.

Esta é a concepção cristã e católica do pecado: só se compreende por referência a Deus. nos tempos modernos, posta de parte a questão da existência de Deus, sentiu-se a necessidade de se negar também o pecado e de explicar o sentimento de culpa no homem através do próprio homem, atribuindo-lhe um caráter pedagógico e psicológico, a sua origem num desvio do espírito e da consciência. Sim, há quem afirme que o pecado pertence ao homem, que é um sinal da sua força e da sua grandeza espiritual.

Nós, porém, reconhecemos o pecado como rebelião contra Deus e contra Cristo, o Salvador, e consideramo-lo como a grande, na verdade, a única desgraça do homem e da humanidade por todo o tempo e por toda a eternidade; Dizemos, como nos Salmos: “Reconheço a minha culpa, e tenho o meu pecado sempre diante dos olhos”. Arrependemo-nos do mal que fizemos. Voltamos com o filho pródigo para junto do Pai e esperamos que Ele nos receba com a mesma vontade, amor e graça com que recebeu o filho “que estava morto e voltou à vida, que estava perdido e foi de novo encontrado” (Luc., 15, 18-32). Oramos pelos muitos que caminham pela senda do pecado, e fazemos penitência por eles, para que Deus se compadeça deles e lhes dê a luz e a força necessárias para romperem com a vida passada.

A Vida Espiritual, Benedikt Baur, Lisboa, 1960.

Última atualização do artigo em 6 de maio de 2025 por Arsenal Católico

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