A grande traição: a mentalidade católico-liberal

Dom Marcel Lefebvre

Reconciliar a Igreja com a Revolução: tal é a empresa dos liberais que se dizem católicos.

Os liberais que se dizem católicos sustentam que a doutrina católica do Reino Social de Nosso Senhor Jesus Cristo e da união da Igreja com o Estado é sem dúvida verdadeira, mas inaplicável mesmo nos países católicos:

·  Na teoria, pode-se aceitar a tese proposta pelos Papas e teólogos.

·  Na prática, deve-se ceder ante as circunstâncias e resolutamente aderir à hipótese: promover o pluralismo religioso e a liberdade de cultos:

Os liberais católicos não têm deixado de sustentar que desejam a ortodoxia tanto quanto os mais intransigentes, e que sua única preocupação são os interesses da Igreja: “a reconciliação que procuram não é teórica nem abstrata, mas somente prática”[1]

É a famosa diferença entre a tese (a doutrina) e a hipótese (prática) conforme as circunstâncias. Notemos que se pode dar uma interpretação correta a esta diferenciação: a aplicação dos princípios deve levar em conta as circunstâncias; isto se faz com ponderação, que é parte da prudência. Daí vem que a presença dentro de uma nação católica de fortes minorias muçulmanas, judias e protestantes, poderá sugerir tolerância desses cultos em uma cidade basicamente católica, por um Estado que continua reconhecendo a verdadeira religião, porque acredita no Reino Social de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Mas cuidado! para os católicos liberais não se trata disso! Segundo eles, os princípios, que são por definição regras de ação, não devem ser aplicados nem propostos porque são inaplicáveis, dizem. Isto é evidentemente falso.

Por acaso deve-se renunciar a pregar e a aplicar os mandamentos de Deus, “terás um só Deus”, “não matarás”, “não cometerás adultério”, somente porque ninguém quer mais saber deles? Somente porque a mentalidade tende a se livrar de toda tutela moral? Deve-se renunciar ao Reino Social de Nosso Senhor Jesus Cristo num país somente porque Maomé ou Buda pedem um lugar nele? Em suma, eles se recusam a crer na eficácia prática da verdade. Pensam que podem afirmar em teoria os princípios católicos e agir sempre contra estes princípios. Esta é a incoerência intrínseca dos liberais que se dizem católicos. Eis o que diz deles o Cardeal Billot S.J.:

“O liberalismo dos católicos liberais escapa a toda classificação e só tem uma nota distintiva e característica: a perfeita e absoluta incoerência.”[2]

O Cardeal afirma que o título de “católico liberal” em si é uma contradição nos termos, uma incoerência, porque “católico” significa sujeição à ordem das coisas humanas e divinas, enquanto o de “liberal” significa precisamente emancipação desta ordem, rebelião contra Nosso Senhor Jesus Cristo.

Vejamos enfim como o Cardeal Billot julga a famosa diferença entre tese e hipótese, dos católicos ditos liberais:

“Do fato de que os acontecimentos reais diferem das condições ideais em teoria, se deduz que os fatos nunca terão a perfeição do ideal, porém somente isto.”

Pelo fato de que existem minorias dissidentes em uma nação católica, conclui-se que talvez nunca se consiga uma unanimidade perfeita, e que o Reino Social de Nosso Senhor Jesus Cristo jamais terá a perfeição manifestada nos princípios; mas não se conclui que na prática se deva rejeitar este reino e que o pluralismo religioso deva se converter em regra! 

Vocês podem ver portanto que no catolicismo liberal (utilizo o termo com repugnância porque ele é uma blasfêmia) há uma escamoteada traição dos princípios, uma apostasia prática da fé no Reino Social de Nosso Senhor Jesus Cristo. Pode-se dizer com certeza: “o liberalismo é pecado”[3] quando se fala do liberalismo católico.

Há também no fundo deste problema um “confusionismo” intelectual, uma mania de se alimentar confusões, uma recusa de definição e clareza. Por exemplo esta confusão entre tolerância e “tolerantismo”: a tolerância é um princípio católico e em certas circunstâncias é um dever de caridade e de prudência política para com as minorias; ao contrário, o que chamamos de “‘tolerantismo” é um erro liberal que quer conceder indistintamente a todos os dissidentes, em qualquer circunstância e em justiça, os mesmos direitos que gozam os que estão na verdade moral ou religiosa. Como se pode notar também em outros aspectos, converter a caridade em justiça é subverter a ordem social, é destruir tanto a justiça como a caridade.

Uma doença do Espírito

Mais do que urna confusão, o catolicismo liberal é uma doença do espírito[4]. Simplesmente o espírito não consegue descansar senão na verdade. Basta que ele se atreva a afirmar algo para que se apresente a ele o contrário, que ele se sente obrigado a considerar também. O Papa Paulo VI é o protótipo deste espírito dividido, de um ser de dupla personalidade. Inclusive podia-se fisicamente ler isto em sua face, em constante vai e vem entre as contradições, e animado de um movimento pendular que oscilava regularmente entre a novidade e a tradição. Dirão alguns: Esquizofrenia intelectual?

Creio que o P. Clérissac viu a natureza desta doença em maior profundidade. É uma “falta de integridade de espírito”, de um espírito que não tem “suficiente confiança na verdade”[5]:

“Esta falta de integridade de espírito nas épocas de liberalismo, se explica no lado psicológico por dois aspectos: os liberais são receptivos e receosos. Receptivos porque assumem com muita facilidade os estados de espírito de seus contemporâneos; receosos porque, por medo de contrariar estes diversos estados de espírito, se encontram em constante inquietude apologética; parecem sofrer eles mesmos as dúvidas que combatem, não têm suficiente confiança na verdade, querem justificar em demasia, demonstrar em demasia, adaptar demais ou mesmo desculpar em demasia.”

Colocar-se em harmonia com o mundo

Desculpar em demasia, que expressão oportuna! Querem desculpar todo o passado da Igreja: as cruzadas, a inquisição, etc.; porém quanto a justificar e demonstrar, eles só o fazem timidamente, principalmente quando se trata dos direitos de Jesus Cristo; mas adaptar, a isso certamente eles se entregam: eis seu princípio:  

“Partem de um princípio prático que consideram inegável: que a Igreja não seria ouvida no ambiente concreto onde Ela deve cumprir sua missão divina, se Ela não se harmonizar com ele.”[6]

Posteriormente os modernistas quererão  adaptar a prédica do Evangelho à falsa ciência crítica e à falsa filosofia imanentista da época, “esforçando-se em tornar a verdade cristã acessível aos espíritos treinados para negar o sobrenatural.”[7] Segundo eles, para converter os que não crêem no sobrenatural, é necessário fazer abstração da Revelação de Nosso Senhor, da Graça, dos milagres… Se você tem de tratar com ateus, não fale de Deus, coloque-se no nível dele, sintonize-se com ele, entre no seu sistema! Por esse caminho você será em breve marxista-cristão: eles é que o terão convertido!

Este foi também o pensamento da Missão de França a respeito do apostolado entre os operários, e que ainda sustentam numerosos sacerdotes: se queremos convertê-los devemos trabalhar com os operários, compartilhar suas preocupações, conhecer suas reivindicações, não nos mostrar como sacerdotes; assim chegaremos a ser como o fermento na massa… ― e por aí foram os padres se convertendo e virando agitadores sindicais ― “Sim, nos dirão, compreenda: era necessário assimilar completamente o ambiente, não chocar, não dar a impressão de que se queria evangelizar ou impor uma verdade.” ― Que erro! Estes indivíduos que não crêem, têm sede de verdade, têm fome do pão da verdade que estes sacerdotes extraviados não querem repartir com eles.

É também este falso pensamento que foi sugerido aos missionários: inicialmente não falem de Jesus Cristo a estes pobres indígenas que morrem de fome! Dai primeiro de comer, depois ferramentas, depois ensinai a trabalhar, o alfabeto, a higiene… e por que não? o controle da natalidade! Mas não falem de Deus, pois eles têm o estômago vazio! Eu porém, diria: precisamente porque são pobres e desprovidos de bens terrenos eles são extraordinariamente acessíveis ao Reino dos Céus, para estes “procurai primeiro o Reino dos Céus”, procurai ao Deus que os ama e sofreu por eles, para que eles participem por suas misérias, de Seu sofrimento Redentor. Se ao contrário, vocês pretendem se pôr em seu nível, fa-los-ão gritar contra a injustiça e acender neles o ódio. Mas se levam Deus a eles. os levantarão, os elevarão, eles serão verdadeiramente enriquecidos.

Reconciliar-se com os Princípios de 1789

Em política, os católicos liberais vêem verdades cristãs nos princípios da Revolução de 1789, sem dúvida um pouco desajustados; porém uma vez purificados, os ideais modernos são plenamente assimiláveis pela Igreja: liberdade, igualdade, fraternidade, democracia (ideológica) e pluralismo. Erro que Pio IX condena no Syllabus: “O Pontífice Romano pode e deve se reconciliar e transigir com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna.” (prop. conden. N° 80, Dz. 1780)  

“O que vocês querem? declara o católico liberal, não se pode ir sempre contra as idéias de seu tempo, remar continuamente contra a corrente, parecer retrógrado ou reacionário”. Já não se quer mais o antagonismo entre a Igreja e o espírito liberal laico, sem Deus. O que se quer é reconciliar o irreconciliável: a Igreja e a Revolução. Nosso Senhor Jesus Cristo e o príncipe deste mundo. Não se pode imaginar empreendimento mais ímpio e mais diluente do espírito cristão, do bom combate pela fé, do espírito de luta, ou seja, do zelo em conquistar o mundo para Jesus Cristo.

Da pusilanimidade à apostasia

Em todo este liberalismo que se diz católico, há uma falta de fé, ou melhor, urna falta de espírito de fé, que é um espírito de entrega total: não se trata mais de submeter o mundo todo a Jesus Cristo, restaurá-lo em tudo, “recapitular tudo em Cristo” como diz São Paulo (Ef 1,20). Já não há quem se atreva a reclamar para a Igreja a totalidade de seus direitos, ficam resignados sem lutar, acomodam-se muito bem, inclusive no laicismo. E por fim, chegam a aprová-lo. Dom Delatte e o Cardeal Billot caracterizam bem esta tendência à apostasia:

“A partir de então, uma linha dividiria os católicos (com Falloux e Montalembert do lado liberal, na França no século XIX) em dois grupos: os que tinham como primeira preocupação a liberdade de ação da Igreja e manutenção de seus direitos em uma sociedade cristã; e os que primeiro se esforçavam por determinar o que a sociedade moderna podia suportar do cristianismo, para logo convidar a Igreja a se reduzir a este limite.”[8]

Diz Billot que todo o catolicismo liberal está contido em um equívoco: “a confusão entre tolerância e aprovação”:

“O problema entre os liberais e nós (…) não está em saber se, dada a malícia do século, deve-se suportar com paciência o que escapa ao nosso poder, e ao mesmo tempo trabalhar para evitar males maiores e realizar todo o bem que ainda seja possível; o problema é precisamente se convém aprovar (…) o novo estado das coisas, cantar os princípios que são o fundamento desta ordem de coisas, promovê-los pela palavra, pela doutrina, pelas obras, como fazem os católicos chamados liberais”[9].

Deste modo Montalembert com seu slogan “a Igreja livre no Estado livre”[10] será o campeão da separação entre a Igreja e o Estado, recusando admitir que esta mútua liberdade levaria necessariamente à situação de uma Igreja submetida a um Estado expoliador. Do mesmo modo um De Broglie escreverá uma história liberal da Igreja, onde os excessos dos Césares cristãos ultrapassam o benefício das constituições cristãs. Assim também um Jacques Piou se fará o arauto da adesão dos católicos franceses à república: não tanto ao regime republicano, mas à ideologia democrática liberal; eis o canto da Ação Liberal Popular de Piou, por volta de 1900, citado por Jacques Ploncard d’Assac:[11]

Nós somos da Ação Liberal Queremos viver com liberdade

Um sim ou um não, à vontade

A liberdade é nossa glória Gritemos: Viva a Liberdade!

Aclamemos a Ação Liberal

Liberal, liberal,

Para todos que a lei seja igual.

Seja igual!

Viva a Ação Liberai de Piou!

Os católicos liberais de 1984 não se comportavam melhor quando cantavam seu canto da escola livre, nas ruas de Paris:

“Liberdade, liberdade, tu és a única verdade!”

Que praga estes católicos liberais! guardam sua fé no bolso e adotam as máximas do século. É incalculável o dano que causaram à Igreja com sua falta de fé e sua apostasia.

Terminarei com um trecho de Dom Guéranger, cheio deste espírito de fé de que vos falei:

“Hoje mais do que nunca (…) a sociedade tem necessidade de doutrinas firmes e coerentes consigo mesmas. Em meio à destruição geral das idéias, somente a asserção, uma afirmação nítida, sólida, sem misturas, logrará ter aceitação. Os ajustes se tornam cada vez mais estéreis e cada um arranca uma fatia da verdade (…). Mostrai-vos, pois, tal como sois no fundo: católicos convictos. (…) 

Há uma graça unida à confissão plena e inteira da fé. Esta confissão, como diz o Apóstolo, é a salvação dos que a fazem, e a experiência mostra que é também daqueles que a escutam.”[12]

Fonte: (Sim, Sim, Não, Não, edição em português, Nº 88, julho 2000.)

in Permanência

[1] Dictionaire de Théol. Cat., T-9. col. 509. art. libéralisme catholique.

[2] Pe. Le Floch, pág. 57.

[3] Dom Felix Sardá y Salvany.

[4] Padre A. Roussel. Libéralisme et Catholicisme, p.16.

[5] Pe. H. Clérissac O.P, Le Mystère de L’Eglise, Cap. 7.

[6] Dictionaire de Théol. Cat., T-9. col. 509.

[7] Jacques Marteaux. Les Catholiques dans I’inquiétude.

[8] Dom Delatte, “Vie de Dom Guéranger”, Solesmes, T II, pg. 11

[9] Citado pelo Pe. Le Floch, op. cit., pág. 58-59.

[10] Discurso de Malines. 20 de agosto de 1863.

[11] L’Eglise ocupée. DPF. 1975. pág. 136.

[12] Le Sens Chrétien de L’Histoire, Nouveile Aurore, Paris, 1977. pág. 31-32.

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