LIBERALISMO É PECADO
D. Félix Sardà y Salvany
20. NECESSIDADE DE PRECAVER-SE CONTRA AS LEITURAS LIBERAIS
Se esta conduta convém observar com as pessoas, muito mais conveniente, e porventura muito mais fácil, é observá-la a respeito das leituras.
O Liberalismo é sistema completo, como o catolicismo, ainda que em sentido inverso. Tem, pois, suas artes, ciências, letras, economia, moral, isto é, um organismo inteiramente próprio e seu, animado por seu espírito, marcado com o seu selo e caráter. Também igualmente o tiveram as mais poderosas heresias, como por exemplo, o arianismo na antiguidade e o jansenismo nos séculos modernos. Há, pois, não só periódicos liberais, mas livros liberais ou com laivos de Liberalismo; abundam, e triste é dizê-lo, neles aprende principalmente a geração atual, razão por que sem o saberem ou advertirem são tantos os que se encontram miseravelmente contaminados.
Que regras há a dar neste caso?
Análogas ou quase análogas às que se deram com relação às pessoas. Leia-se o que há pouco dissemos, e aplique-se aos livros o que se disse dos indivíduos. Não é trabalho difícil, e poupar-nos-á aos leitores o incômodo da repetição.
Uma coisa advertiremos apenas, especialmente em relação a esta matéria. E vem a ser que nos guardemos de nos desfazermos em elogios a livros liberais, seja qual for o seu mérito científico ou literário, a não ser que façamos tais elogios com grandíssimas reservas e salvando sempre a reprovação que merecem por seu espírito ou sabor liberal. E fazemos insistência neste ponto, porque são muitos católicos simplórios (mesmo no jornalismo católico) que a fim de passarem por imparciais e assumirem um verniz de ilustração que sempre lisonjeia, tocam bombo e sopram a trombeta da Fama em favor de qualquer obra científica procedente do campo liberal; dizem que tal proceder só tem por fim provar que aos católicos não punge reconhecer o mérito, onde quer que se encontre; que assim se atrai o inimigo (maldito sistema de atração que vem tornar-se em jogo de ganha-perde, pois insensivelmente somos nós os atraídos); que, finalmente, não há perigo nenhum nisto, mas sim notório espírito de equidade. Que pena nos causou há poucos meses ler num periódico, fervorosamente católico, repetidos elogios e recomendações de um poeta célebre que escreveu, por ódio à Igreja, poemas como a Visão de S. Martinho e A última lamentação de Lord Byron! Que importa seja grande ou não o seu mérito literário, se com este seu mérito literário nos assassina as almas que devemos salvar? Seria o mesmo que ter considerações para com o bandido pelo brilho da espada com que nos fere, ou pelos belos lavrados que adornam a espingarda que nos dispara. A heresia envolvida nos artificiosos afagos de uma rica poesia, é mil vezes mais mortífera do que a que só se dá a beber nos áridos e fastidiosos silogismos da escola. A grande propaganda herética de quase todos os séculos, leio nas histórias terem-na ajudado a fazer os versos sonoros. Poetas de propaganda tiveram os arianos; tiveram-nos os luteranos, muitos dos quais se prezavam, com o seu Erasmo, de cultos humanistas; a escola jansenista de Arnaldo, de Nicole e de Pascal é escusado dizer que foi essencialmente literária. Sabe-se a que deveu Voltaire os princípios e o sustentáculo da sua espantosa popularidade. Como é, pois, que nós, os católicos, nos havemos de tornar cúmplices de tais sereias do inferno e dar-lhes nome e fama, e ajudá-los em sua obra de fascinação e corrupção da juventude? O que ler em nossos periódicos que tal poeta é admirável poeta, ainda que liberal, vai e compra na livraria aquele admirável poeta, ainda que liberal; devora-o, ainda que liberal, e, por sua vez, o desventurado leitor torna-se liberal como o seu favorito autor. Quantas inteligências e corações não deitou a perder o infeliz Espronceda! Quantas, o ímpio Larra! Quantas, quase na atualidade, o malfadado Becquer! Isto para não citar nomes vivos, e não nos seria difícil citá-los às dezenas.
Para que havemos de fazer à Revolução o serviço de apregoar as suas glórias infaustas? A que título? – De imparcialidade? Não; porque não deve haver imparcialidade em ofensa do principal, que é a verdade. Uma mulher má é infame por mais formosa que seja, e é tanto mais perigosa quanto mais bela. – A título de gratidão? Não, porque os liberais mais prudentes do que nós, não recomendam o que é nosso, posto que tão belo como o deles, antes procuram obscurece-lo com a crítica ou enterrá-lo com o silêncio.
De Santo Inácio de Loyola, diz o seu ilustre biógrafo o Padre Rivadeneyra, que era tão zeloso nesta parte, que nunca permitiu se lesse nas suas aulas obra alguma do famoso humanista da sua época, Erasmo de Rotterdam, apesar de que muitos de seus elegantes escritos não se referiam à religião, e só porque na maior parte deles mostrava sabor protestante.
Do Padre Faber, que ninguém acusará de pouco ilustrado, inserimos aqui um precioso trecho a propósito de seus famosos compatriotas Milton e Byron. Dizia assim o grande escritor inglês, em uma de suas formosíssimas cartas:
“Não compreendo a estranha anomalia das gentes palacianas, que citam com elogio homens como Milton e Byron, manifestando ao mesmo tempo que amam a Cristo e põem n’Ele toda a esperança de salvação.
“Amam a Cristo e sua Igreja, e louvam na sociedade os que blasfemam da Igreja e de Cristo. Trovejam e falam contra a impureza como coisa odiosa a Deus, e celebram um ser cuja vida e obras estão dela saturados.
“Não posso compreender a distinção entre o homem e o poeta; entre as passagens puras e as impuras.
“Se alguém ofende o objeto do meu amor, não posso receber dele satisfação nem prazer; e não posso conceber que com amor ardente e delicado para com Nosso Salvador possam achar gosto nas obras de seus inimigos. A inteligência admite distinções, o coração não.
“Milton (maldita seja a memória do blasfemo!) passou grande parte da sua vida escrevendo contra a divindade de meu Senhor, minha única fé, meu único amor; este pensamento tortura-me. Byron, olvidando os seus deveres para com a pátria e todos os afetos naturais, rebaixou-se vergonhosamente, ataviando com formosos versos o crime e a incredulidade. O monstro que colocou Jesus Cristo (atrever-me-ei a dizê-lo) em paralelo e como companheiro de Júpiter e de Mafoma, não é para mim mais que uma besta fera, ainda que suas passagens mais puras, e nunca me arrependo de haver lançado ao fogo, em Oxford, uma formosa edição de suas obras em 4 volumes… A Inglaterra não necessita de Milton. Como pode o meu país necessitar de uma política, um valor, um talento, ou qualquer outra coisa amaldiçoada por Deus? E como pode o Eterno Pai abençoar o talento e a obra de quem em prosa e em verso renegou, ridicularizou e blasfemou da divindade de seu Filho? Si quis non amat Dominum Nostrum Jesum Christum, sit anathema, dizia S. Paulo.”
Nestes termos escrevia o grande literato católico inglês, um dos maiores vultos literários da moderna Inglaterra. E escrevia antes de haver feito a sua completa abjuração do Protestantismo. Assim discorreu, sempre a sã intransigência católica, assim falou sempre o bom senso da fé.
Espanto-me de que tenha havido tanta polêmica sobre se convém ou não a educação clássica, baseada no estudo dos autores gregos e latinos da antiguidade pagã, apesar de lhes diminuir sua eficácia a distância dos séculos, o mundo distinto das ideias e costumes, e a diversidade da língua; e que quase nada se haja escrito sobre a venenosa e letal educação revolucionária, que sem escrúpulo se dá ou permite dar à juventude por muitos católicos.
O Liberalismo é Pecado – Pe. Félix Sardá y Salvany, 1949.