Oração matinal [detalhe] Assinado e datado de E.N.Downard - 1860-61, entre 1860 e 1861 - Domínio público - Wikimedia Commons

Vinde, Senhor, em meu auxílio, a fim de me ajudardes a não ser tragado pela tempestade.

1 – Ao ver com clareza a sua miséria, a alma compreende a distância infinita que a separa de Deus; e gora que mais anela por se unir ao Senhor, vê-se mais longe do que nunca, absolutamente incapaz de transpor a enorme distância que a separa dEle. Também isso a faz sofrer, pois quem ama deseja ardentemente unir-se ao amado. Este sofrimento às vezes é tão intenso que parece à alma já não existir para si esperança algum nem de santidade, nem de união com Deus, nem mesmo de salvação eterna.

Nestas angústias não há nada de exagerado e muito menos de falso. O Espírito Santo, sob cuja ação a alma se encontra, nada lhe pode inspirar que não seja perfeitamente conforme à verdade. É muito verdade que entre nós, pobres criaturas, e Deus, perfeição suma e infinita, há uma distância e uma diferença incomensuráveis; é também verdade que, por nossas próprias forças, somos radicalmente impotentes para nos elevarmos até Deus; e é ainda verdade que, se examinarmos as nossas ações, mesmo as melhores, não há nada em nós que possa merecer nem a união com Deus nem a vida eterna. Se há muitos que não estão convencidos disto e até se consideram capazes de alguma coisa em relação a Deus e à santidade, é porque ainda não foram iluminados sobre a profundidade do seu nada.

Se, porém, é verdade sermos absolutamente indignos de Deus, do Seu amor, da união com Ele, da Sua glória eterna, também é verdade que Deus, com o Seu amor misericordioso, quis cumular a distância infinita que nos separa dEle, quis inclinar-Se para nós a ponto de nos revestir da Sua vida divina e de nos chamar à Sua intimidade. O que à nossa miséria é absolutamente impossível, é muito possível à onipotência de Deus e à Sua misericórdia infinita; efetivamente Ele quer fazê-lo; mas quer também consciencializar-nos de que esta obra é unicamente Sua.

Apesar do receio de não poder alcançar Deus e a salvação eterna, a alma deve manter-se firme numa esperança inabalável. Se é justificado o receio de si mesma, e se está convencida de que nada pode esperar das suas obras, maior razão tem para tudo esperar de Deus, cujo amor e cuja bondade superam infinitamente a sua miséria e as suas expectativas. Comportando-se assim, as angústias da noite do espírito não farão mais que enraizar a alma não só numa humildade profunda, mas também numa esperança mais pura e mais perfeita, porque unicamente apoiada no amor misericordioso de Deus.

2 – ” E assim neste estado – diz S. João da Cruz – padece a alma, quanto ao entendimento, grandes trevas… Sente-se seca e fria, algumas vezes fervorosa, não achando alívio em coisa alguma nem sequer um pensamento que a console, nem mesmo conseguindo levantar o coração a Deus” (CV. 1, 20).

Um outro motivo de pena espiritual é a seca aridez em que a alma se encontra, a incapacidade de pensar em Deus, de se servir da consideração das coisas divinas. Parece-lhe que entre Deus e ela se levantou uma espécie de muro altíssimo que impede os seus gemidos de chegarem até Ele. É a noite profunda em que não pode avançar senão apoiada na fé pura e nua. Com efeito, deve avançar acreditando com todas as suas forças que Deus é infinitamente bom, que lhe quer bem e ouve o seu lamento, que Deus conhece o seu tormento e a prova só para a purificar. Não é raro que neste estado a alma seja submetida a fortes tentações contra a fé, por exemplo, tentações semelhantes às que afligiram S.ta Teresa do Menino Jesus no último período da sua vida.

“O Senhor – escrevia a Santa – permitiu que a minha alma fosse invadida pelas mais espessas trevas e que o pensamento do céu, tão doce para mim, não fosse senão motivo de combate e de tormento” (M.B. pg. 254). Contudo acrescenta: “Apesar de não ter o gosto da fé, procuro ao menos realizar-lhe as obras. Creio que fiz mais atos de fé desde há um ano do que durante toda a vida” (ib. pg. 257); aludindo às suas poesias sobre a felicidade do céu, confessava: “Quando canto a felicidade do céu, a posse eterna de Deus, não sinto com isso nenhum alegria, pois canto apenas o que quero acreditar” (ib. pg. 258). Deve ser esta a conduta da alma em tal estado: crer porque quer crer, sem se apoiar sobre o que sente ou experimenta, mas apenas na palavra de Deus. Estes atos de fé pura, despojados de todo o conforto, independentes de qualquer sentimento, são atos de fé heróica que tanto mais honram a Deus quanto mais exclusivamente se apoiam na revelação divina e que, quanto mais privadas estiverem de todo o amparo humano, tanto mais unem com Ele a alma. As trevas da noite do espírito têm também o fim de habituar a alma a caminhar em fé pura, em fé heróica.

Colóquio – “Ó Jesus, Rei pacífico, cuja presença é desejada pelo céu e pela terra, como Vos afastastes de mim? Como desapareceu toda a minha riqueza e a minha força? Ó privação bem mais penosa que os ferimentos mortais! Ó Separação verdadeiramente amarga, pior que as angústias da morte!

“Porque Vos escondestes, dulcíssimo esposo meu, e me causastes, com a Vossa ausência, esta noite cheia de trevas palpáveis e de tristíssima desolação? Quem me ajudará neste abandono extremo, nesta solidão? Oh! como são grandes os sofrimentos do amor, como é grande a solicitude do coração que não sabe nem pode outra coisa senão amar e não pode possuir aquele que ama!

“Ó meu Rei clementíssimo, não tenho outro remédio senão suspirar por Vós; do íntimo do meu coração clamo por Vós e invoco a ternura do Vosso amor. Lembrai-Vos de mim, ó esperança minha, e considerai a amargura da repulsa e a duração do abandono que me consomem.

“Não me abandoneis, ó dulcíssimo Filho da Virgem, pois juntamente conVosco, do seio da Vossa Mãe puríssima, nasce a misericórdia. Vede, Senhor, como desfaleceram todas as minhas forças e como, sem Vós, ando oprimido pelo horror e pela sombra da morte.

“Tende compaixão de mim, meu Amigo, porque, esgotadas todas as forças, somente me restam os lábios e a língua para clamar por Vós. Ó vida imortal e fonte de água viva, não me priveis da Vossa presença com tanto rigor, porque ela me é mais querida do que a vida. Não descansarei nunca, ó dulcíssimo Filho de Deus, nem cessarei de gemer e suplicar enquanto não voltardes para mim o Vosso rosto” (Ven. João de J. M., o.c.d.).

Intimidade Divina, Meditações Sobre a Vida Interior Para Todos os Dias do Ano, P. Gabriel de Sta M. Madalena O.C.D. 1952.

Última atualização do artigo em 8 de março de 2025 por Arsenal Católico

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