“Não considereis que estais obrigados, mas a que estais obrigados, se é ao bem ou ao mal”. Santo Agostinho
Como lhes disse, o liberalismo faz da liberdade de ação, definida no capítulo anterior, uma liberdade de toda coação, um absoluto, um fim em si. Deixarei ao Cardeal Billot a análise e contestação desta pretensão fundamental dos liberais:
“O princípio fundamental do liberalismo, escreve ele, é a liberdade de toda coação, qualquer que seja, não só daquela que se exerce pela violência e que somente atinge os atos externos, como também da coação que provém do temor das leis e penalidades, das dependências e necessidades sociais, ou resumindo, dos laços de qualquer natureza que impeçam o homem de agir segundo sua inclinação natural. Para os liberais, esta liberdade individual é o bem por excelência, o bem fundamental, inviolável, ao qual tudo deve ceder, excetuando talvez o que exige a ordem puramente material da cidade; a liberdade é o bem ao qual tudo mais está subordinado; ela é o fundamento necessário de toda construção social”[36].
“Este princípio do liberalismo, continua o Cardeal Billot, é absurdo, antinatural e quimérico”. Eis a análise crítica que ele desenvolve; eu resumo e comento:
O Princípio Liberal é Absurdo
Este princípio é absurdo: “incipit ab absurdo”, começa com a insensatez de pretender que o principal bem do homem é a ausência de todo liame que atrapalhe ou restrinja a liberdade. Realmente o bem do homem deve ser considerado como um fim: aquilo que é desejado em si. Vejamos porém que a liberdade, a liberdade de ação, é somente um meio, é somente a faculdade que pode permitir ao homem adquirir um bem. É portanto relativa ao uso que se faz: boa se é para o bem, porém má se é para o mal. Não é portanto um fim em si mesma e certamente não é o fim principal do homem.
De acordo com os liberais, a coação constitui sempre um mal (a não ser para garantir uma certa ordem pública). Mas é claro, por exemplo, que a prisão de um malfeitor, não só por garantir a ordem pública mas também para castigo e emenda do culpado é um bem. Igualmente a censura da imprensa é praticada até pelos liberais contra seus inimigos, de acordo com o ditado (liberal?): “não há liberdade para os inimigos da liberdade”. Em si mesma a censura é um bem para defender a sociedade contra a expansão do veneno do erro que corrompe os espíritos.
Como conseqüência, deve-se afirmar que a coação não é em si mesma um mal, que é inclusive do ponto de vista moral, “quid indifferens in se”, algo em si mesmo indiferente; tudo dependerá da finalidade para a qual seja empregada. É aliás o ensinamento de
Santo Agostinho, doutor da Igreja, que escreve a Vincentium (carta nº 93):
“Penso que não se deve considerar que se é obrigado, mas a que se é obrigado: se ao bem ou ao mal. Não é que ninguém seja capaz, sozinho, de um esforço para se tornar bom, mas é que o temor daquilo que não se quer sofrer põe fim à obstinação e empurra ao estudo da verdade que se ignorava; faz afastar o falso que se sustentava e procurar a verdade que não se conhecia, e assim se chega a querer o que não se queria”.
Durante o Concílio Vaticano II, intervi pessoalmente várias vezes para protestar contra a concepção liberal de liberdade que estava sendo aplicada à liberdade religiosa, concepção segundo a qual a liberdade se definiria como a ausência de qualquer coação. Eis o que então eu declarava:
“A liberdade humana não pode ser definida como uma liberação de toda coação, sob pena de destruir toda autoridade. A coação pode ser física ou moral. A coação moral no campo religioso é de grande utilidade e é encontrada praticamente em todas as Sagradas Escrituras: “o temor de Deus, é o começo da sabedoria“[37].
“A exposição contra a coação, nº 28, é ambígua e falsa sob certos aspectos. O que resta da autoridade paterna dos pais de família cristãos sobre seus filhos? Da autoridade dos professores nas escolas cristãs? Da autoridade da Igreja sobre os apóstatas, os hereges e os cismáticos? Da autoridade dos chefes de estado católicos sobre as falsas religiões, que trazem com elas a imoralidade, o racionalismo, etc[38].
A mim me parece que não se pode reafirmar melhor o qualificativo de “absurdo”, que o cardeal Billot dá ao princípio do liberalismo, senão citando o Papa Leão XIII:
“Nada se poderia ter dito ou imaginado de mais absurdo e de mais em oposição ao bom senso, do que esta afirmação: o homem sendo livre por natureza, deve estar isento de toda lei”[39].
Equivale a dizer: sou livre, logo devem deixar-me livre! O sofisma escondido, fica claro ao se explicar um pouco: sou livre por natureza, dotado de livre arbítrio, portanto sou livre também em relação a qualquer lei, e de toda coação exercida pela ameaça de castigos! Ou seja, leis sim, mas sem prever qualquer sanção. Mas isto seria a morte das leis: o homem não é um anjo, nem todos os homens são santos!
Espírito Moderno e Liberalismo
Gostaria de fazer agora uma observação. O liberalismo é um erro gravíssimo, cuja origem histórica já vimos. Mas há um espírito moderno que, sem ser francamente liberal, apresenta uma tendência ao liberalismo. Desde o século XVI o encontramos em autores católicos que não são suspeitos de simpatia com o naturalismo ou com o protestantismo. Não há dúvida que é um sinal deste espírito moderno considerar que “alguém é livre enquanto não haja lei que lhe venha restringir”[40]. Sem dúvida, toda lei limita a liberdade de ação, mas o espírito da Idade Média, ou seja, o espírito da ordem natural e cristã de que falamos antes, sempre considerou a lei e suas coações primeiramente como uma ajuda e uma garantia de verdadeira liberdade, não como uma limitação. Questão de ponto de vista?, dirão; eu direi: não! Questão essencial que marca o começo da troca fundamental de mentalidade; um mundo dirigido para Deus considerado como fim último a alcançar custe o que custar. Um mundo orientado completamente para o Soberano Bem, dá lugar a um mundo orientado para o homem, preocupado com as prerrogativas do homem, seus direitos, sua liberdade.
Do Liberalismo à Apostasia – Mons. Marcel Lefebvre
36 Op. Cit. Págs. 45-46
37 Obs. Enviada ao Secretariado do Concílio, 30 de Dezembro de 1963.
38 Intervenção oral na Aula Conciliar, Outubro de 1964.
39 Encíclica “Libertas”, PIN. 180
40 Suárez SJ. (1548-1617) exprime este espírito ao escrever: “homo continet libertatem suam”, o homem detém sua liberdade, no sentido de que a liberdade é anterior à lei (De Bon.Et Mal.Hum.Act., disp. XII, sect. V, pág. 448, citado por DTC. XIII, 473). Um espírito tomista como Leão XIII não admitiria esta distinção de duas realidades estritamente correlatas.
Fonte: Dominus Est