A caridade na vida dos negócios

Mulher dando esmolas de János Thorma - Data desconhecida, Foto Virág Judit Galéria, Public Domain, Wikimedia Commons

I – O papel da caridade na vida dos negócios

Lendo certos moralistas, seríamos inclinados a pensar que o respeito ao direito alheio, à estrita justiça constitui a mais alta expressão da perfeição cristã. Nada menos exato: acima da lei do justo rígido, há um preceito mais nobre e mais imperativo: o da caridade. Toda a lei da perfeição cristã se condensa em dois preceitos: o amor total a Deus, formulado no primeiro mandamento, e aquele semelhante ao primeiro, que nos manda amar o próximo como a nós mesmos. Nestes dois preceitos se resumem toda a lei e os Profetas; esta lei superior de caridade deve inspirar e guiar toda a atividade do homem de negócios cristão.

II – Exato alcance do preceito da caridade

O preceito da caridade pode ser formulado de dois modos; positivo e negativo.

Positivamente, o preceito se formula com a obrigação de fazermos a outrem, todo o bem que desejamos se faça a nós mesmos.

Debaixo de sua forma negativa, proibe-nos fazermos a outrem o que não quiséramos que se fizesse a nós mesmos.

O campo aberto ao exercício da caridade é dos mais vastos. Algumas de suas exigências se impõem como um dever formal à consciência de todos os homens. Outras manifestações desta virtude procedem de um mais poderoso impulso de generosidade: são os atos de caridade heroica, que não nos são impostos por um preceito estrito, mas aos quais nos convida a vontade de nos conformar mais inteiramente ao ideal perfeito de caridade de Cristo: “Si vis perfectus esse…se queres ser perfeito, vai, vende teus bens, dá o produto aos pobres e terás um tesouro no céu: depois vem, e seguem-me”.

Todavia, mesmo quando a caridade se impõe aos homens, como uma obrigação formal de consciência, convém observar que, a este dever, não corresponde na pessoa de outrem, um direito rigoroso e pessoal. Daí resulta que, ao contrário do que dissemos, falando da justiça, a violação da lei da caridade, não traz consigo a obrigação de reparar ou de restituir. Basta, mas isto é indispensável, que não se persevere numa atitude contrária à caridade.

III – Justiça e caridade

Nem por isso devemos estimar menos o preceito da caridade. A prática deste mandamento achará no domínio da vida econômica um vasto campo de aplicação. A caridade, com efeito, abranda a lei da justiça no que esta tem e rígido demais, inclinando o credor a não exigir tudo o que lhe é rigorosamente devido, e o devedor a ir além, quando for preciso, na execução de seus compromissos, da medida exata do seu dever. Por este fato, tende a conciliar harmoniosamente as divergências que nascem da oposição de interesses: ela amortece a aspereza da concorrência: usa de benevolência em todas as relações da vida econômica, que é na realidade, um contínuo intercâmbio de serviços.

O homem de negócios cristão não se contentará portanto em respeitar escrupulosamente os preceitos estritos da justiça: empenhar-se-á em conformar toda a sua conduta à lei superior da caridade.

Sem renunciar à procura modesta do lucro, recusará considerar a vida de negócios como uma profissão essencialmente lucrativa. O proveito não será para ele senão a retribuição do serviço que prestou a seus semelhantes, provendo-os das coisas necessárias ou úteis à vida. Este modo de encarar as coisas, lhe imporá uma sábia moderação na busca do lucro. Saberá até, eventualmente, renunciar a qualquer lucro, para responder à extrema necessidade, em que se encontra o próximo, dos bens que tem à sua disposição. Dos lucros lentamente acumulados no decurso de sua carreira comercial, ele não hesitará, quando for necessário ou oportuno, em consagrar uma parte à esmola e ao sustento de obras de utilidade social. Ele se acostumará a considerar seus colegas, menos como concorrentes perigosos, do que como companheiros, empenhados como ele, num mesmo serviço de utilidade pública. Longe de os invejar, ele estará sempre pronto a assistí-los e a alegrar-se do bom êxito de seus esforços. A concorrência, deixando de ser considerada como uma luta sem piedade, se converterá, tanto quanto depender de sua vontade, em uma estimulante emulação para o bem de todos.

Dominado por esta caridade, o homem de negócios cristão deixará de ver no pessoal assalariado ou adjunto, meros instrumentos de sua própria fortuna: saberá tratá-lo como um grupo de íntimos colaboradores, servidores dedicados da comunidade. O patrão não deve abdicar a sua autoridade: é e fica o “capitão da indústria”, responsável pelo êxito da campanha que empreendeu, para o bem da comunidade; mas a sua autoridade se despojará de tudo o que for arbitrário e duro, exercitar-se-á com a persuação, com a benevolência, até com a indulgência, diante das deficiências da fraqueza humana.

Entre o comerciante e seus fornecedores ou seus clientes, a partida começada não deixará de ser um jogo apertado e hábil: comprador ou vendedor, o homem de negócios, por mais cristão que o suponhamos, terá interesses muito definidos que defender e salvaguardar; ser-lhe-á lícito usar de toda a diplomacia necessária para alcançar condições tão vantajosas e situações tão favoráveis quanto lhe for possível, mas evitará tomar atitudes egoístas e unilaterais, para o que não deverá considerar as partes com que trata como sendo aqueles aos quais a operação em curso deve, necessariamente, reduzir ao papel de perdedores. Muito pelo contrário, inspirar-se-á sempre na convicção tão bela de Santo Tomás, a saber: que o intercâmbio foi instituído para a vantagem de ambos contraentes.

Fácil é de ver que, assim concebido, o exercício da vida de negócios tomará uma feição muito diferente daquela que, infelizmente, se revestiu em geral nos nossos dias, e que, longe de ser um conflito áspero e invejoso de interesses, voltará a ser o que não devêra nunca deixado de ser, um contínuo e fecundo intercâmbio de serviços, suavizando a caridade cristã os demasiados rigores de estrita e fria justiça.

Padre Alberto Muller S. J. in A Moral e A Vida de Negócios, 1954

Última atualização do artigo em 20 de dezembro de 2024 por Arsenal Católico

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