LIBERALISMO É PECADO
D. Félix Sardà y Salvany
16. HAVERÁ HOJE ERRO DE BOA FÉ EM MATÉRIA DE LIBERALISMO?
Falei acima de liberais de boa fé e não hesitei em empregar certa frase de dúvida, sobre se há ou não in rerum natura algum tipo desta raríssima família. Inclino-me a crer que poucos há, e que dificilmente cabe hoje na questão do Liberalismo esse erro de boa-fé, que poderia alguma vez tornar desculpável a sua profissão. Não negarei em absoluto que tal ou tal caso excepcional possa dar-se, porém será verdadeiramente caso raríssimo e fenomenal.
Em todos os períodos históricos dominados por uma heresia se têm dado casos frequentíssimos de um ou mais indivíduos que, a pesar seu, arrastado em certo modo pela torrente invasora, hão participado da heresia, sem que se possa explicar tal participação, a não ser por uma suma ignorância ou boa fé.
Forçoso é, não obstante, concordar em que se algum erro se apresentou jamais sem aparência alguma que o tornasse desculpável, foi este do Liberalismo. A maior parte das heresias que têm assolado o campo da Igreja procuraram encobrir-se com disfarces de afetada piedade, que dissimulassem sua maligna procedência. Os Jansenistas, mais hábeis que nenhum de seus antecessores, chegaram a ter adeptos em grande número, a quem pouco faltou para que o vulgo cego tributasse as honras só devidas à santidade. A sua moral era rígida, os seus dogmas tremendos, o aparato exterior de suas pessoas ascéticos e até iluminado. Acresce que a maior parte das antigas heresias versou sobre pontos muito sutis do dogma, só discerníveis para o hábil teólogo, e em que a multidão indouta não podia por si só formar critério a não ser submetendo-se confiada ao de seus mestres reconhecidos. Por isso, era natural que, caindo em erro o superior hierárquico de uma diocese ou província, caísse igualmente com ele a maior parte de seus subordinados, que depositavam em seu Pastor a maior confiança, máxime quando as comunicações com Roma menos fáceis noutro tempo tornavam menos acessível a toda a grei cristã a voz infalível e indefectível do Pastor universal. Isto explica a difusão de muitas heresias antigas, que não hesitamos em classificar de meramente teológicas; isto dá a razão daquele angustioso grito com que exclamava S. Jerônimo no século IV, quando dizia: Ingemuit universus orbis se esse arianum, gemeu o mundo inteiro assombrado de encontrar-se ariano. E isto faz compreender como no meio dos maiores cismas e heresias, como são os atuais da Rússia e da Inglaterra, é possível que Deus conserve muitas almas suas em que não está extinta a raiz da verdadeira fé, por mais que esta em sua profissão externa apareça desfigurada e viciada; as quais, unidas ao corpo místico da Igreja pelo batismo e à sua alma pela praça interior santificante, podem chegar a ser conosco participantes do reino celestial.
Acontece isto com o Liberalismo? Apresentou-se envolto no disfarce de meras formas políticas; porém foi este logo desde o princípio tão transparente, que muito cego havia de ser quem não adivinhasse no mau disfarce toda a sua perversidade. Não soube conter-se na máscara da hipocrisia e do pietismo em que o escondia um ou outro de seus panegiristas; num momento rompeu por tudo, e anunciou com sinistros esplendores seu antecessor infernal. Saqueou as Igrejas e conventos; assassinou religiosos e clérigos; deu rédea solta a toda a impiedade; até nas imagens mais veneradas cevou seu ódio de condenado. Acolheu num momento, debaixo da sua bandeira, toda a ralé social; foi sua precursora e apresentadora, em toda parte, a corrupção calculada.
Não eram dogmas abstratos e metafísicos os novos que pregava em substituição dos antigos; eram fatos brutais, que bastava ter olhos para vê-los e simples bom senso para abominá-los. Grande fenômeno se viu nesta ocasião e que se presta muito a sérias meditações. O povo simples e iliterato, porém, honrado, foi o mais refratário à novidade. Os grandes talentos corrompidos pelo filosofismo foram os primeiros seduzidos. O bom senso natural dos povos fez a justiça imediata aos atrevidos reformadores. Nisto, como em tudo, se confirmou que veem mais claro, não os ilustrados de entendimento, mas os limpos de coração. E se isto podia dizer-se do Liberalismo ao seu alvorecer, o que não poderá dizer-se dele hoje, quando tanta luz se tem feito sobre o seu odioso processo? Nunca erro algum teve contra si mais severas condenações da experiência, da história e da Igreja. Ao que não quer crer nesta, como bom católico, hão de força-lo a convencer-se daquelas, como homem de meta honradez natural.
O Liberalismo, em menos de cem anos de reinado sobre a Europa, tem dado já de si todos os seus frutos; a geração presente está recolhendo os últimos, que trazem bastante amargo o seu paladar e perturbada sua tranquila digestão. O argumento do Divino Salvador, que nos manda julgar da árvore pelos frutos, raras vezes teve aplicações mais oportuna.
Por outro lado, não se viu muito claro desde o princípio qual era o parecer da Igreja em face da nova reforma social? Alguns infelizes ministros dela foram arrastados pelo Liberalismo à apostasia, era este o primeiro dado com que os simples fiéis haviam de julgar de uma doutrina que tais prosélitos arrastava. Porém, o conjunto da hierarquia foi reputado sempre com grande razão como o inimigo do Liberalismo. Que significa o epíteto de clericalismo, com que os liberais honraram a escola mais tenaz inimiga de suas doutrinas, senão uma confissão de que a Igreja docente foi sempre inimiga delas? Como tem considerado o Papa, os Bispos e Padres, os Frades de todas as cores, o comum dos homens de piedade e de sã conduta? Tem-nos considerado sempre como clericais, isto é, como antiliberais. Como pode, pois, alguém alegar boa fé num assunto em que aparece tão claramente discriminada a corrente ortodoxa da que o não é?
Assim, os que compreendem claramente a questão podem ver as razoes intrínsecas dela; os que a não compreendem tem de sobra autoridade extrínseca para formar juízo cabal, como deve formá-lo em toda as coisas, que prendem com a sua fé, um bom cristão. Luz não tem faltado, por misericórdia de Deus; o que tem havido de sobra é indocilidade, interesses bastardos, desejo de vida livre. Não enganou aqui a sedução que deslumbra o entendimento com falso esplendo, mas a que o escurece envolvendo em negros vapores o coração.
Cremos, pois, que salvas raríssimas exceções, só grande esforço de engenhosíssima caridade pode fazer que, discorrendo segundo os retos princípios de moral, se admita hoje no católico a desculpa de boa fé em assunto do liberalismo.
O Liberalismo é Pecado – Pe. Félix Sardá y Salvany, 1949.