Embriaguez, Jan Miense Molenaer, The King Drinks [detalhe], entre 1636 e 1637, Museu Liechtenstein, domínio público, Wikimedia Commons

Ai, dos que arrastam a iniquidade com cordas de vaidade, e o pecado como brocha de carro” (Is. V, 18.)

Não há cadeia mais dura, e que mais prenda o homem do que o mau hábito.

Quando o mesmo pecado se comete com muita frequência, os seus intervalos vão-se tornando por isso mesmo cada vez mais pequenos, acabando por se converter num hábito e numa necessidade, que nos arrasta com um poder quase satânico. Pode até um pecado chegar a constituir uma parte essencial da vida e ações de cada dia, e a apoderar-se de tal modo de nós, que transforme a nossa existência num pecado permanente. Que situação tão triste!

A razão vai-se escurecendo de tal modo que não raro chega a chamar bem ao mal, e mal ao bem[1], e a gloriar-se de praticar o mal[2].

A consciência já só protesta raramente e a custo. A vontade, cada vez mais debilitada, até a sombra do seu antigo poderio deixa perder. Cai-lhe da cabeça a coroa, e das mãos o cetro. Os vassalos proclamam-se príncipes independentes; cobrem-se com a púrpura que profanaram, e ditam leis do alto do trono que usurparam.

A alma obedece sem resistência ao menor sinal da paixão. Sai ao encontro do inimigo, lança-se nos seus braços e leva a degradação a ponto de o receber jubilosa no seu palácio. Que estado tão horroroso!

A maldição cinge o pecador habitual à maneira de vestido; penetra como a água no íntimo do seu ser, e como o azeite nos ossos[3].

A maldição do mau hábito rodeia-o por completo: todos os seus olhares, gestos, palavras e ações visam o pecado.

A maldição do mau hábito penetrou também no seu interior; a memória, a imaginação, e os pensamentos estão dela compenetrados.

Numa palavra, ela é já como que um elemento necessário da sua vida. Substitui a fé, que acaba por desaparecer, graças à ousadia das preocupações e aos enganos da paixão. Constitui a sua única esperança, porque há muito que renunciou à felicidade do céu. O amor, o verdadeiro e único amor puro e nobre, o amor do Criador extinguiu-se já na sua alma: os direitos que tinha sobre ela, foram usurpados pelas criaturas.

O mau hábito é como um vestido, como um cinto que te cinge os rins[4]: jamais te abandona, para toda a parte te acompanha. Que horror!

Oh morte contínua, que se repete vezes sem conta! Corrução, sobre corrução! Sepulcro cada vez mais profundo, que se vai aproximando do inferno!

Este estado de morte converteu-se numa segunda natureza; peca-se continuamente, alegremente, sem remorsos, com arrogância e desprezo pelo bem e pela virtude.

Ai, dos que arrastam a iniquidade com cordas de vaidade, e o pecado como brocha de carro![5]

Pois não aumenta acaso a malícia do pecado a sua repetição! Se nem sempre aumenta o objeto do pecado, cresce no entanto a inclinação para ele, e a dependência e escravidão da vontade; desaparece o desejo de emenda, e aumentam a facilidade e disposição para cometer pecados cada vez mais graves.

Suicidaste-te; cometeste uma injustiça contigo mesmo, vendeste-te por completo ao mal[6].

Redobras de amor ao pecado e apegas-te às criaturas com vínculos mais apertados; exatamente como com a prática do bem e da virtude, aumentas em ti o amor de Deus e do sobrenatural.

Além disso, o mau hábito cegando-nos, torna cada vez mais raras as graças extraordinárias e cada vez mais violenta a força com que o pecado nos arrasta, não nos deixando considerar na malícia que a ofensa de Deus encerra. De quem é a culpa de tantos males? Quem levou o homem à beira de semelhante abismo? Quem lançou este véu sobre o seu entendimento? Que lhe reduziu a vontade à escravidão? Quem lhe amordaçou a consciência, quem desprezou e continua a desprezar o auxílio da graça?

Oh, como é perigoso semelhante estado! Mais perigoso do que o homem que teve a infelicidade de cair em qualquer pecado mortal; porque, sendo indubitável que basta um só para nos levar à condenação eterna, se a morte nos surpreender com ele, contudo, como o coração não está endurecido, ainda ouve os avisos de Deus, ainda tem ao menos a possibilidade de poder sair com algum esforço deste estado, e de se resolver a mudar de vida[7].

O mau hábito porém, leva à insensibilidade e ao endurecimento: a desafiar ao Senhor, e a provocar os terríveis juízos de Deus.

Abominável e inútil é o homem que bebe a iniquidade como a água[8].

Desgraçado! Já lá vão cinco, dez anos que o mau hábito se apossou de ti! Que abismo! Foram cinco, dez, trinta anos de escravidão!

E escravidão que destrói até o que há de naturalmente bom no homem, degradando-lhe os sentimentos, envilecendo-lhe o espírito, envenenando-lhe o coração, cobrindo-lhe a alma de lepra, consumindo-lhe a medula dos ossos, povoando-lhe o corpo de podridão, e transformando-o na peste da humanidade!

Que espetáculo, o caos da sua vida passada! Que tecido de iniquidades, que série de abismos! E depois… à hora da morte!…

Oh jovem cristã, compadece-te da tua alma![9] E já que tudo podes perder, necessário é que te abalances a tudo.

Senhor! Arrancai-me do lodo, para que não me afogue! Não permitais que a água da corrente me arraste para o mar profundo, e que o abismo cerre apertadamente as suas fauces sobre mim[10].

A Virgem Prudente, Pensamentos e Conselhos acomodados às Jovens Cristãs, por A. De Doss, S.J. versão de A. Cardoso, 1933.

[1] Is. V, 20.
[2] Salm. LI, 3.
[3] Salm. CVIII, 18.
[4] Salm. CVIII, 19.
[5] Is. V, 18.
[6] Reis XI, 19-20.
[7] Salm. LXXVI, 11.
[8] Jó. XV, 16.
[9] Ecl. XXX, 24.
[10] Salm. LXVIII, 15-16.

Última atualização do artigo em 7 de março de 2025 por Arsenal Católico

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