A sua conversão não tem mais de desagradável, nem a sua companhia nada de molesto; nela apenas se encontra satisfação e alegria (Sab. VIII, 16).
Espírito de recolhimento, vida interior! Palavras são estas que ressoam dum modo estranho aos teus ouvidos, mas que no entanto são bem conhecidas daqueles que seguem o caminho da perfeição.
Assim como o corpo tem uma vida própria, assim a alma tem a sua.
O corpo vive do alimento, e a sua vida manifesta-se pela atividade dos sentidos; a alma vive da graça, da oração, da comunicação com Deus, e manifesta a sua vida contemplando a Deus, ouvindo a sua viz, falando e comunicando com ele, e chegando-se à sua divina bondade, de mil modos diferentes. E quanto mais íntima e frequente for esta comunicação, tanto mais abundante será a vida da alma, e maior a sua felicidade.
Porque chamas infelizes os cegos, os surdos e os mudos? Porque neles a vida não é completa, porque a têm paralisada dalgum modo; para ter o gozo pleno dela, é preciso podê-la exercitar: uma vida inerte e morte é uma contradição.
Contemplar a Deus, ouvir a sua voz e conversar com ele, eis as ações pelas quais se manifesta a vida da alma.
Não será verdadeiramente cego, quem conhecendo pela fé que Deus está presente no seu coração, passa os dias sem ao menos para Ele dirigir um olhar?
Não será surdo aquele que não ouve a voz de Deus aquele em cujo coração não encontra eco a sua voz amorosa?
Não será mudo quem desconhece a linguagem do coração, e nem ao menos sabe como há de falar interiormente com Deus?
Não será insensível aquele que não se impressiona com as maravilhas da bondade, grandeza, santidade e justiça de Deus? aquele a quem nem os benefícios movem à gratidão, nem os terríveis juízos de Deus infundem um temor salutar?
Morto, ou ao menos adormecido, está pois aquele que não vé, não ouve, não fala, não se move nem dá sinal algum de vida.
Pelo contrário, vive e vive vida interior quem dirige constantemente para Deus, presente me toda a parte, os seus sentidos interiores, empregando-os nos seus louvores.
Por conseguinte, aparta-te cada vez mais das suas criaturas, entra dentro em ti, considera a Deus, fala com Ele ouve a Sua voz, e ama-O.
Se alguém ouvir a minha viz e me abrir, diz o Senhor, eu entrarei em sua casa, cearei com ele, e ele comigo (1).
Este banquete espiritual é o trato íntimo com Deus, alimento da alma, seu alívio e consolação, dita inefável para os que nele encontrarem alegria e consolação. Provai e vereis quão suave é o Senhor (2).
Mas ai! muitas vezes o coração é semelhante ao mercado duma cidade populosa, em que tudo anda confundido e misturado, homens e animais, crianças e adultos, bons e maus.
Porque não o transformaremos antes num retiro consagrado a Deus, com uma porta estreita, e bem fechada; num lugar pacífico de refúgio, onde jamais chegue o ruído do mundo?
Oh suave solidão, animada pela presença de Deus! Amável companhia, que longe de causar aborrecimento, só gera gozo e alegrias! (3) Oh recolhimento santíssimo, tão fecundo em frutos de graça e em divinas consolações! Quem não daria, oh solidão tranquila, quem não trocaria pela tua suavidade todas as amizades deste mundo, as suas agitações, os seus vãos discursos, os seus falsos oferecimentos, alegrias e expressões estrepitosas?
Sentes, ó jovem, alguma preocupação contra este gÊnero de vida, que se te afigura tão extraordinário?
Julgas que a vida interior te tornará original e singular, ou que te colocará numa falsa poição perante o mundo?
E quem te disse que precisas de cortar as relações necessárias ou úteis com o mundo exterior? Trata com as pessoas, quando houver para isso necessidade ou até conveniÊncia, mas amigavelmente, com simplicidade e afabilidade, e com a devida reserva, de modo que edifiques o próximo e não te apartes de Deus.
Pensas que a vida interior te fará reservada e sombria, que povoará de tristeza a tua juventude?
Não confundas o domínio da natureza com o reinado da graça. Pois não há de a graça produzir na alma os mesmos efeitos que esta produz no corpo? Acaso não procede ela daquele que é a fonte da vida, que é conhecimento, vontade e amor? E não te dará ele uma vida abundante? Sim: a tua alegria, despojada de tudo o que é impetuoso, dissipado e meramente exterior, toma um novo aspecto, mais verdadeiro, mais nobre e mais duradouro. Onde está Deus, aí reina a alegria. O reino de Deus não consiste em comer e beber, mas na justiça, na paz e no gozo do Espírito Santo (4).
Não sabes ainda como é possível aliar a atividade exterior com o recolhimento interior?
Os exemplos to mostrarão. Porventura não és senhora da tua casa? E não depende porventura da tua vontade dar guarida no coração ou excluir dele o que te aprouver? Não podes trabalhar com mais serenidade de espírito? Não podes ordenar os teus trabalhos, de modo que tenão arrastem e prendam?
De quanto não é capaz a boa vontade, animada pela graça de Deus!
A Virgem Prudente, Pensamentos e Conselhos acomodados às Jovens Cristãs, por A. De Doss, S.J. versão de A. Cardoso, 1933.
(1) Apoc. III, 20.
(2) Salm. XXXIII, 9.
(3) Sab. VIII, 16.
(4) Rom. XIV, 17.