Ó Senhor, fazei-me conhecer as belezas da Vossa justiça e ensinai-me a amá-la com zelo e com confiança.
1 – A justiça, apesar de parecer tão diferente da misericórdia é, com esta, um aspecto da santidade de Deus, da Sua bondade e das Suas perfeições infinitas. Ou, mais exatamente, justiça e misericórdia são dois aspectos diversos – mas inseparáveis – do único amor com que Deus ama as Suas criaturas. A misericórdia é amor, amor infinito do bem, e da mesma forma o é da justiça; a misericórdia relaciona-se intimamente com a justiça e a justiça com a misericórdia. “Porque Deus é justo, é também compassivo”, diz Sta Teresa do Menino Jesus (Cart. 203); Deus é misericordioso porque é justo e é justo porque é misericordioso porque, conhecendo a nossa miséria, inclina-Se para nós com misericórdia infinita.
Contudo a justiça distingue-se da misericórdia, ou melhor, a justiça é o amor de Deus que nos dá tudo o que é necessário para o nosso bem e para alcançarmos o nosso fim. A misericórdia, pelo contrário, é o amor de Deus que nos dá muito mais do que o necessário. todavia, a justiça nunca se separa da misericórdia, antes a supõe, porque Deus não poderia, por exemplo, prover às necessidades da nossa vida – o que é um ato da justiça – se antes não tivesse criado em nós estas necessidades, chamando-nos à existência – o que é um ato de misericórdia. A justiça, portanto, acompanha sempre a misericórdia porque Deus dá-nos sempre muito mais do que nos seria devido: como criaturas, não nos competia senão um estado de felicidade natural; Deus, porém, quis chamar-nos a um estado de felicidade sobrenatural. para vivermos como filhos de Deus bastar-nos-ia o socorro da graça, mas Deus quis dar-nos também o grande dom da Eucaristia. Para remir o mundo do pecado teria sido suficiente uma só gota do Sangue de Jesus. Ele, porém, quis morrer na cruz. Eis que assim a misericórdia acompanha e ultrapassa a justiça e esta sempre se enlaça com aquela, pois Deus não seria justiça infinita se não fosse misericórdia infinita e vice-versa.
2 – A misericórdia é a efusão do sumo bem que comunica a Sua bondade às criaturas; a justiça é o zelo que defende os direitos deste sumo Bem que deve ser amado sobre todas as coisas. Neste sentido, a justiça intervém quando a criatura, calcando aos pés os direitos de Deus, em lugar de O amar e de O honrar, O ofende. Então vem o castigo que pune o pecador, castigo que é fruto da justiça, mas que é, ao mesmo tempo, fruto da misericórdia: “porque o Senhor castiga aquele a quem ama” (Prov. 3, 12). Deus, com efeito, não castiga o pecador para o aniquilar, mas para o levar à conversão: é assim que nesta vida as disposições da justiça divina são sempre ordenadas em vista da misericórdia, isto é, têm sempre como fim pôr o pecador em condições de aproveitar da misericórdia divina. Por isso, quando Deus castiga, é sempre misericordioso; os Seus castigos não são unicamente punições, mas sobretudo remédios para curar as nossas almas do pecado. Apenas são castigo para aquele que não quer de modo nenhum converter-se.
A misericórdia e a justiça alternam-se e enlaçam-se continuamente na nossa vida espiritual. Pela misericórdia, Deus oferece-nos a Sua amizade divina, mas pela justiça não pode admitir á Sua intimidade uma alma que conserva o mínimo apego ao pecado e à imperfeição e, por isso, submete-a a provas purificadoras. Estas provas têm sempre um duplo fim: fazer-nos reparar as nossas culpas – tal é a finalidade da justiça – e destruir em nós as últimas raízes do pecado para nos dispor para a união com Deus – que é a finalidade da misericórdia. Devemos, portanto, aceitar as nossas provações com humildade, reconhecendo que as merecemos; devemos aceitá-las com zelo e amor da justiça, querendo reivindicar os direitos de Deus, direitos que amiudadas vezes esquecemos e descuramos; mas devemos aceitá-las também com amor, porque toda a provação é uma grande misericórdia de Deus que só pretende fazer-nos avançar no caminho da santidade.
Colóquio – “Ó Senhor, Vós concedestes-me a Vossa misericórdia infinita e é através dela que contemplo e adoro as Vossas outras perfeições divinas! Assim, todas me aparecem envolvidas em amor; mesmo a justiça, e talvez ainda mais do que qualquer outra, me parece revestida de amor. Que doce alegria pensar, ó Senhor, que Vós sois justo, isto é, que tendes em conta as nossas fraquezas, que conheceis perfeitamente a fragilidade da nossa natureza. De que poderei, pois, ter medo? Ah! Vós, o Deus infinitamente justo que Se dignou perdoar com tanta bondade todas as faltas do filho pródigo, não há de igualmente ser justo para comigo que continuo sempre conVosco?
“Sei que é preciso ser muito puro para aparecer diante de Vós, Deus de toda a santidade, mas sei também que Vós sois infinitamente justo e é esta Vossa justiça, que assusta tantas almas, que constitui o objeto da minha alegria e da minha confiança… Ó Senhor, espero tudo da Vossa justiça, como da Vossa misericórdia; porque sois justo, sois também compassivo e cheio de doçura, tardo em castigar e abundante em misericórdia” (T.M.J. M.A. pg. 214; Cart. 203).
Que será de mim que tenho de censurar-me por tantos erros? mas onde abunda o pecado superabunda a graça. E se a Vossa misericórdia, ó Senhor, dura eternamente, cantarei sem fim a Vossa bondade. A Vossa bondade, a Vossa justiça e não a minha; eu não tenho outra senão a Vossa, porque Vos fizestes minha justiça. Acaso poderei temer que uma só não chegue para ambos? Mas a Vossa justiça é infinita e permanece por toda a eternidade. Portanto, esta justiça imensa a ambos nos cobrirá, mas em mim cobrirá a multidão dos meus pecados ao passo que em Vós, ó Senhor, deverá somente esconder os tesouros da Vossa bondade que me esperam nas aberturas das chagas de Cristo. Aí encontrarei a Vossa infinita doçura, oculta, é verdade, mas oculta somente para aqueles que se querem perder” (S. Bernardo).
Intimidade Divina, Meditações Sobre a Vida Interior Para Todos os Dias do Ano, P. Gabriel de Sta M. Madalena O.C.D. 1952.