O nosso lugar

O NOSSO LUGAR

Ó meu Deus, fazei que eu Vos conheça e me conheça a mim! Conheça que Vós sois Aquele que é e eu aquele que não é.

1 – Entre todas as criaturas, com quem mais gostamos de nos comprazer e para as quais a nossa natureza se sente mais atraída, o nosso eu ocupa sem dúvida o primeiro lugar. Não há pessoa, embora pouco dotada de dons e qualidades, que não ame a própria excelência, e não procure de qualquer modo fazê-la brilhar aos seus próprios olhos e aos dos outros. Com este fim somos muitas vezes levados espontaneamente a exagerar o nosso valor e, por consequência, a mostrar exigências e pretensões que nos tornam altivos, arrogantes e muito difíceis nas nossas relações com os outros. A humildade é a virtude que mantém nos seus justos limites o amor da própria excelência; e enquanto este nos impele a pôr-nos em evidência, isto é, a ocupar um lugar superior àquele que nos compete, a humildade é a virtude que nos faz ficar no nosso lugar. A humildade é a verdade, porque tende a pôr na verdade tanto a nossa inteligência, fazendo-nos reconhecer o que na realidade somos, como a nossa vida, levando-nos a ocupar, perante Deus e os homens, lugar que nos pertence e não outro.

A humildade far-te-á reconhecer que, diante de Deus, não és senão uma pequena criatura Sua, em tudo dependente dEle, quer na tua existência quer nas tuas obras. Tendo recebido de Deus a vida, nem um instante podes existir independentemente dEle; criou-te com a Sua ação criadora e mantém-te na vida com a Sua ação conservadora. Assim nem sequer poder realizar o ato mais insignificante sem o concurso de Deus, à semelhança de uma máquina, ainda a mais perfeita, que não pode fazer o mais pequeno movimento se não é posta em ação pelo artista que a fabricou. É bem verdade que, ao contrário da máquina, as tuas ações não são nem mecânicas, nem forçadas, mas conscientes e livres; todavia, nem um dedo podes mover sem o concurso do Artista divino.

Por conseguinte, tudo o que possuis na ordem do ser – qualidades, dotes, capacidade, etc., – e tudo quanto adquiriste com o teu trabalho, nada é teu, mas tudo, de uma maneira ou de outra, é dom de Deus, é ação realizada com a ajuda divina. “Que tens tu que não recebeste? E se o recebeste, porque te glorias, como se não o tiveras recebido?” (I Cor. 4, 7).

2 – Na ordem sobrenatural, onde tudo depende da graça, verifica-se do modo mais exato a palavra de Jesus: “Sem mim nada podeis fazer” (Jo. 15, 5). Ainda que, pelo Batismo, a graça santificante nos tenha elevado à ordem sobrenatural, e as virtudes infusas tenham tornado as nossas faculdades capazes de produzir atos sobrenaturais, todavia, adverte S. Paulo, “ninguém pode dizer: ‘Senhor Jesus’, senão pelo Espírito Santo” (I Cor. 12, 3). Isto é, mesmo para fazeres o mais pequeno ato sobrenatural, precisas do auxílio de Deus, precisas de que a graça atual te previna com as suas inspirações e te acompanhe na ação até a realizares plenamente.

O maior teólogo, que estudou a fundo a doutrina católica, precisa tanto do auxílio da graça atual para a pôr em prática nos mínimos pontos, para fazer um só ato de amor de Deus, como o camponês que apenas sabe o seu catecismo. Mesmo o santo, que recebeu tantos favores e luzes divinas, que já chegou ao heroísmo das virtudes, não pode fazer o mais pequeno ato de virtude sem o auxílio da graça atual. Compreendes assim como deve ser grande a tua dependência de Deus. Por isso, estás muito longe da verdade quando, confiado na tua ciência e longa prática de vida espiritual, julgas que as tuas luzes ou as tuas virtudes te bastam para agir como bom cristão. Não, S. Paulo lembra-te que “sufficientia mostra ex Deo est”, a nossa capacidade vem de Deus (II Cor. 3, 5). Sem Deus nada de bom podes pensar, nem dizer, nem querer, “porque Deus é que opera em nós o querer e o executar, segundo o seu beneplácito” (Fil. 2, 13).

Portanto, conatural e próprio à tua natureza limitada e além disso, ferida pelo pecado original, só tens uma coisa: a capacidade de faltar aos teus deveres, de falhar, de pecar. Tira de ti o que é de Deus e verás como, por ti mesmo, nada és ou ainda menos que nada, pois o nada não pode ofender a Deus e tu, pelo contrário, possuis esta triste possibilidade.

Colóquio – “Ó Pai onipotente, Deus verdade, Deus amor, concedei-me a graça de entrar na cela do conhecimento próprio, reconhecendo que eu não existo por mim mesma, mas que todo o ser e a bondade que há em mim procedem unicamente de Vós. Mostrai-me os meus defeitos para que saiba detestar a minha malícia, e assim fugirei do amor próprio e encontrar-me-ei vestida com a  veste nupcial da divina caridade que é necessária para ser admitida às núpcias da vida eterna” (Sta Catarina de Sena).

“Fazei, ó meu Deus, que eu aprenda a conhecer-me profundamente! Que eu me persuada verdadeiramente de que nada sou e de que Vós sois tudo. Que não me considere nada mais do que aquele nada que sou: e que nunca mais faça nada para mim mas tudo para Vós. Que nenhuma criatura pense mais em mim, nem fale mais de mim, nem faça nada por mim, nem me dê mais nada, mas tudo faça por Vós e tudo Vos dê a Vós. Que o meu nada se reduza a nada aos olhos de todas as criaturas e aos Vossos olhos, meu Deus. E que Vós, o Tudo, sejais tudo em tudo e por tudo” (S. João Eudes).

Descobri-me, ó Senhor, o meu nada, mas descobri-o de forma que não só o compreenda, mas que também tenha dele uma convicção prática e profunda. Vós sabeis como isto é difícil para a minha natureza soberba! Se a minha inteligência não pode resistir á evidência da verdade e deve necessariamente admitir que nada sou, nada tenho e nada posso sem Vós, na prática o meu eu procura sempre atribuir a si e arrogar-se alguma coisa comprazendo-se nela com se fosse sua. Ajudai-me, Senhor, a vencer este orgulho porque, Vós bem vedes que é o ladrão dos Vossos dons, e torna infecunda a minha vida, impedindo-me de receber a abundância das Vossas graças.

Fazei, Senhor, que eu reconheça o meu nada, pois quanto mais o reconhecer com simplicidade e humildade de coração, mais Vos agradará serdes o meu Tudo. Vós o tudo e eu o nada; Vós aquele que é, e eu aquele que não é! Glorificai-Vos, portanto, no meu nada! Neste nada triunfe o Vosso amor e a Vossa graça, mas triunfe também a Vossa misericórdia, pois eu sou um nada que pecou. Peccavi, Domine, miserere mei!

Intimidade Divina, Meditações Sobre a Vida Interior Para Todos os Dias do Ano, P. Gabriel de Sta M. Madalena O.C.D. 1952.

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