As ilusões

Os que conscientemente resistem à graça cometem um contrassenso e uma falta, e a consequência destas resistências, di-lo-emos logo mais, são deploráveis. Os que se furtam à ação da graça, ordinariamente menos culpados, corrigem-se, entretanto, dificilmente, porque não compreendem bem seu erro. São, estes, vítimas de ilusões.

A ilusão pode ser o efeito da ignorância e, então é menos funesta; mas é muitas vezes filha da imprudência, da soberba ou do apego à própria vontade, com o desejo mais ou menos consciente de desculpar-se a seus próprios olhos.

Pode-se ter ilusão sobre seu estado interior, quer por ceder à presunção, quer por se entregar à desconfiança. Quantas pessoas estão inclinadas a se julgar sempre favoravelmente! Exageram suas qualidades e não querem confessar a si mesmas seus defeitos. Tais pessoas, cuja virtude é ainda fraca e vacilante porque são pouco enérgicas na renúncia, tem, como geralmente as almas cristãs, grande estima por tudo o que é bom e horror instintivo ao mal; a perfeição se lhes afigura muito desejável. Estas disposições que são antes graças do que atos meritórios, antes convites do Senhor do que obras de generosidade delas, iludem-nas. Julgam-se virtuosas por admirarem a virtude e não percebem que suas veleidades estão longe de ser resoluções. Seu entusiasmo está na imaginação e não na vontade, e seu proceder está em desacordo com seus pensamentos. Embora tivessem sentimentos cheios de doçura, enlevos de amor, se recuam diante do que custa à natureza, estão ainda muito pouco adiantadas. Cem “quereria” não vale um só “quero” e um bom sacrifício tem muito mais valor, diante de Deus, do que sentimentos calorosos que não levam à renúncia. Quando estas pessoas, que têm mais imaginação do que vontade, estão na aflição ou na secura, exageram quase sempre suas provações e consideram-se como vítimas muito duramente atingidas. Exageram também sua fraqueza, descuidam de certos deveres cujo cumprimento se tornou penoso e, em vez de reconhecerem sua falta de energia, vão repetindo a si mesmas: “Isto me é impossível”. Outras, igualmente pouco generosas e excessivamente sensíveis, gostam de desculpar sua frouxidão, comprazendo-se na consideração de seus aborrecimentos, aflições, sacrifícios pequeninos, mas que elas julgam muito duros. “Tenho já tanto que sofrer, costuma dizer: Deus há de estar contente com o que estou aturando”; e não se convencem que padecem com pouco amor e furtam-se a muitos sacrifícios que Nosso Senhor esperava delas.

As pessoas que, pelo contrário, são propensas, por índole, a ver todas as coisas pelo lado sombrio e, como o dissemos acima, (1) se afligem demasiadamente de seus defeitos, imaginam que a virtude está acima de suas forças, e que seus esforços são inúteis como impotentes suas orações. É uma ilusão funestíssima; enquanto não reagirem energicamente, todo progresso lhes será impossível.

Pode-se ter ilusão acerca dos seus deveres devido à excessiva confiança em seu próprio juízo ou ao apego a seus gostos e vontades. Em primeiro lugar, devido ao apego a suas próprias idéias: a confiança em sua pequenina sabedoria impede de pedir ou de ouvir os conselhos de pessoas esclarecidas, que substituem a Deus e têm o encargo de conduzir as almas. Certas pessoas, pela confiança que têm em si, chegam ao ponto de porem a perfeição onde não está. Atribuem a certas práticas uma eficácia que não têm. Não querem compreender que o renunciar ao próprio parecer, a humildade e a obediência são indispensáveis para alcançar a perfeição; assim, sobrecarregam-se de orações vocais, que nunca consentem em abreviar ou omitir, e descuidam, entretanto, as verdadeiras virtudes, ou ainda não praticam nenhuma penitência corporal, sob o pretexto que só a mortificação interior é importante; ou, pelo contrário, fazem consistir a virtude nas austeridades e nenhum esforço empregam para abrandar seu gênio e se mostrar amáveis para com todos. Nesta categoria é preciso ainda colocar as pessoas sem nenhuma grande virtude, que se julgam e se dizem incompreendidas, não têm confiança em ninguém e falta-lhes a humildade necessária para bem se conhecer e conduzir.

Quanto aos que não querem renunciar a seus gostos, não reconhecem humildemente seus erros e procuram adormecer a consciência; o que, às vezes, conseguem facilmente. Então, como seus gostos e seus deveres de estado não concordam, descuidam destes para se entregarem a suas ocupações favoritas e não sentem remorsos.

Existe outra forma de ilusão, mais rara, é verdade, mas funestíssima. É a ilusão destas almas que se julgam objetos de favores extraordinários, imaginando ouvirem palavras divinas, quando somente sua imaginação é que ferve e as engana. Toda a pessoa que pensa que Deus lhe fala, deve submeter à obediência as inspirações e, sobretudo, as ordens que crê receber. A obediência é o caminho seguro e os erros, as decepções, os dolos são numerosos nas revelações verdadeiras ou falsas. Até quando Deus fala, como observa muito acertadamente São João da Cruz, e com ele todos os doutores místicos, suas palavras podem ser mal entendidas, mesmo por almas santíssimas. O demônio que procura enganá-las e perde-las, não terá mais poder sobre elas se, custe o que custar, renunciam a suas idéias para seguirem a voz da obediência.

O remédio para toda ilusão está na oração, na humildade e na renúncia. Longe de se julgar bastante sábio para se conduzir com segurança, é necessário reconhecer humildemente sua fraqueza e a grande necessidade que todos nós temos de ser iluminados pelo Senhor para não cairmos em erros, de pedirmos insistentemente as luzes do Espírito Santo, de solicitarmos os conselhos das pessoas prudentes, mormente de obedecermos aos que Deus instituiu nossos guias e que recebem graças especiais para dirigir-nos, finalmente de sacrificarmos com alegria nossos gostos para procurar exclusivamente em tudo, a vontade de Deus. Deus, do seu lado, nunca permite que as almas fiéis que o invocam, se humilham, se renunciam e obedecem, sejam arrastadas pelo inimigo infernal em erros funestos.

Manual de Espiritualidade, cap. VII, por A. Saudreau, Cônego honorário de Angers. Primeiro Capelão da Casa Madre do Bom Pastor, 1937.

(1) Vede nº 13, pág. 19.

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