Justiça e religião

Ajudai-me, Senhor, pela Vossa santa graça a prestar-Vos toda a homenagem de que sou capaz.

1 – A justiça leva-nos a dar a cada um o que lhe é devido. Mas quando se trata de Deus, é evidente que nunca conseguiremos dar-Lhe tudo o que Lhe devemos, corresponder suficientemente aos Seus dons ou prestar-Lhe o culto e a homenagem a que tem direito a Sua infinita majestade. Se nós podemos satisfazer as nossas obrigações a respeito do próximo na medida requerida pela justiça, não o poderemos nunca acerca das obrigações para com Deus. Por mais que o homem faça, ficará sempre imensamente abaixo daquilo que a justiça exige. Por isso a justiça para com Deus resume-se numa necessidade imperiosa de se dar a Ele sem restrição, sem reserva, sem medida, sem cálculo. Por outras palavras, a justiça para com Deus impele-nos à doação total de nós mesmos, para Lhe rendermos, ao menos, toda a homenagem de que Ele nos tornou capazes pela Sua graça.

Devemos refugiar-nos em Jesus porque a nossa justiça é insuficiente, porque Ele “foi feito para nós justiça” (I Cor. 1, 30), não somente no sentido de que nos justificou do pecado, mas também porque veio á terra a fim de render ao Pai, em nome de toda a humanidade, um culto digno dEle. Portanto em Jesus, nas Suas chagas, no Seu Sangue precioso, devemos procurar o que precisamos para suprir a nossa insuficiência e satisfazer as nossas dívidas para com Deus, e encontrá-lo-emos em superabundância. Mesmo consagrando-nos totalmente ao serviço e ao culto do Senhor, somos sempre servos inúteis, somos sempre grandes devedores, mas esta situação, em vez de nos abater, deve ser um grande estímulo para nunca nos determos na nossa entrega a Deus e, ao mesmo tempo, deve levar-nos a recorrer a Jesus, nossa Salvador e Mediador, com imensa confiança.

2 – A virtude da religião é a que nos leva a prestar a Deus a homenagem e o culto devidos; neste sentido relaciona-se com a virtude da justiça cujas condições, porém, não pode satisfazer plenamente, mas da qual procura aproximar-se o mais possível. A nossa religião só se torna capaz de honrar a Deus duma forma digna dEle, enquanto participa da religião de Cristo, quer dizer, enquanto se associa às homenagens, às adorações, aos louvores e aos oferecimentos que se elevam do Seu Coração ao Pai celeste. Jesus foi o religioso por excelência, no sentido de que todos os Seus afetos, a Sua atividade, a Sua vontade, foram orientados para a glória do Pai e para o Seu serviço, visto que a Sua vida inteira foi um ato contínuo de culto, de religião. “Não sabíeis que devo ocupar-me das coisas de meu Pai?” (Lc. 2, 49); eis a disposição fundamental do Seu espírito. Jesus, que no segredo do Seu Coração, adora sem cessar a Trindade, que muitas vezes exprime também exteriormente a Sua oração levantando os olhos a céu e invocando o pai, que passa grande parte da noite em colóquios solitários com Ele, que pontualmente Se dirige ao templo de Jerusalém para todos os atos de culto externo prescritos pela Lei, que morre na cruz para oferecer à Trindade um sacrifício digno dEla, mostra-nos em que consiste a verdadeira virtude da religião. Acima de tudo é culto interno, porque “Deus é espírito, e em espírito e verdade é que O devem adorar os que O adoram” (Jo. 4, 24), mas é também culto externo, porque todo o nosso ser incluindo o nosso corpo, deve tomar parte nas homenagens que devemos prestar a Deus.

Os religiosos que, por meio dos votos, se consagram totalmente ao serviço de Deus, praticam no mais alto grau a virtude da religião coma condição, porém, de viverem os seus compromissos “em espírito e verdade”. Mas aquele que não está ligado por votos deve procurar, em todas as suas ações, ter sempre em vista a glória, a honra e o serviço de Deus e por isso deve realizá-las de modo a poderem ser-Lhe apresentadas como atos de homenagem, de oferecimento, de sacrifício. Assim, a virtude da religião, em vez de se limitar unicamente às horas de oração, abrange toda a nossa vida, transformando-a à imitação da de Jesus e em união com ela, num ato contínuo de homenagem a Deus.

Colóquio – “Que Vos darei, Senhor, em troca de todos os Vossos dons? A razão e a justiça natural exigem que eu me dê inteiramente a Vós de quem recebi tudo o que sou e ordenam-me que Vos devo amar ainda mais e tanto mais quanto os Vossos dons me excedem a mim próprio: Vós destes-me, com efeito, não só o meu ser, mas ainda, por graça, o Vosso ser.

“Se já por ter sido criado, me devo dar inteiramente a Vós, que mais acrescentarei em troca da minha redenção? Na criação Vós destes-me a mim mesmo; na redenção Vós destes-Vos a mim e, dando-Vos, restituístes-me a mim mesmo. Dado e logo restituído, eu deve-me a Vós em troco de mim e devo-me duas vezes. Porém, que Vos poderei dar, ó meu Deus, a troco de Vós mesmo? Mesmo que eu me pudesse entregar a Vós mil vezes, que sou eu comparado conVosco?

“Eu Vos amarei, ó Senhor, amar-Vos-ei a Vós que sois a minha força, o meu apoio, o meu refugio, o meu libertador. Eu Vos amarei pelos Vossos dons e segundo a minha medida, inferior certamente à medida justa, mas não inferior à minha capacidade de Vos amar. Saberei, sem dúvida, amar-Vos mais quando Vos dignardes dar-me mais amor, contudo não Vos amarei nunca tanto quanto mereceis. Os Vossos olhos viram a minha imperfeição, mas no Vosso livro estarão inscritos os que fazem tudo o que podem, mesmo que não possam fazer tudo o que devem” (S. Bernardo).

“Invoco-Vos, ó Pai onipotente, pela caridade do Vosso Filho onipotente, nem sei que outro intercessor poderia encontrar senão este, que se fez propiciação pelos pecados. Peço-Vos por intermédio dEle, Sumo Sacerdote, Pontífice verdadeiro e bom pastor, o qual Se ofereceu a Si mesmo em sacrifício, dando a vida pelo Seu rebanho; peço-Vos por intermédio dEle que está sentado à Vossa direita e intercede por nós, a fim de que me concedais a graça de Vos bendizer e glorificar em união com Ele, com muita compunção de coração, com muitas lágrimas, com muita reverência. Eis o meu Advogado junto de Vós, ó Deus Pai, eis a Hóstia Santa, agradável a Vós, perfeita, oferecida em odor de suavidade e por Vós aceite” (Sto Agostinho).

Intimidade Divina, Meditações Sobre a Vida Interior Para Todos os Dias do Ano, P. Gabriel de Sta M. Madalena O.C.D. 1952.

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