O Problema da Vida

Pode o homem desinteressar-se de todo e qualquer problema, tenha ou não tenha motivos para isto. Há, porém, um problema que é forçoso encarar e resolver, embora não se queira: é o problema da vida.

Posso me desinteressar da questão social. Posso não lançar nem sequer um olhar sobre as vicissitudes históricas da China. Posso sacudir os ombros diante das discussões a favor do classicismo ou do romantismo. Posso declarar, como Pascoli, que o meu partido é o dos homens sem partido. Posso atirar uma insolência a todos os filósofos, a todos os sábios e a todos os poetas. Posso declarar que nem quero pensar nestes problemas. Será uma tolice, mas posso pensar assim e tomar esta atitude. Não posso porém descuidar-me do problema da vida.

Fosse eu um cético que ri de todos e de tudo, e vivesse despreocupado e não levasse nada a sério, não seria esta uma solução do problema? Se fosse um pessimista de óculos escuros e enxergasse tudo preto e acabasse disparando um tiro na cabeça, porventura não teria resolvido o problema com este gesto de loucura? Em suma, quem vive e quem morre, vive e morre de um modo determinado: disto ninguém escapa.

As soluções individuais do problema são variadíssimas. Uns levam vida de brutos, outros de santos. Este, como Horácio, quer coroar-se de rosas, porque amanhã há de morrer. Aquele, como Goethe, quer gozar o instante fugaz. Um tende a realizar em si o super-homem de Nietzche; outro se contenta com viver comodamente de renda, fazendo uma visita diária aos jardins públicos e jogando uma tranqüila partida de bilhar. Uns vivem na estratosfera da cultura; outros preferem a lama dos charcos. Para uns o campo das lutas políticas tem uma atração irresistível; para outros a voz mais poderosa é a da Bolsa, do alpinismo, dos teatros, da agricultura, da oficina e do café, etc. Um enfermo já não saberá que remédios há de experimentar afim de prolongar ainda uns dias a sua dolorosa existência; um homem sadio acabará a sua vida ingerindo veneno. Cada um, afinal de contas, resolve de um modo todo particular o problema da sua existência.

Apesar disso, entre a imensa variedade dos viandantes, cada um dos quais anda como quer, podemos distinguir algumas grandes estradas que os homem percorrem. Já as indiquei num trabalho meu: Primeiros rudimentos de pedagogia. E, afinal, basta refletir um pouco para concordar com as verificações que iremos fazendo a seguir.

1 . A vida desorganizada

A primeira estrada, que é larga e muito freqüentada, é a escolhida pelos que vivem a sua vida atomisticamente.

Ninguém estranhe esta expressão, que é difícil só na aparência.

Não estamos, acaso, no século das organizações? Em nossos dias, tudo se organiza. Organizam-se os operários. Organizam-se os industriais. A Ação Católica é uma organização. Os partidos políticos são outras tantas organizações. Os trusts americanos do carvão são organizações. Agora quase tudo já foi organizado: a assistência mediante o socorro mútuo, os ex-alunos de um colégio, o comércio, a venda das batatas. O que não está organizado ou o está de modo imperfeito, trata-se logo de organizá-lo com toda perfeição. É a tendência característica de nossos tempos, depois da desagregação da época individualista.

Acontece, entretanto, este fato estranho: muitas vezes, os que organizaram os outros e têm a bossa de verdadeiros organizadores, não organizam a sua vida, isto é, vivem atomisticamente, executando uma ação após outra, mas sem coordenar a multiplicidade dos atos numa unidade orgânica.

Na obra citada, eu propunha dois exemplos: o do bruto e o do charlatão. Parece que fotografam com fidelidade a situação.

O bruto dorme, acorda, come, bebe, trabalha e descansa. Que diferença encontrais vós entre este modo de viver e o de tantos homens que vegetam, se afadigam, divertem-se e se agitam como brutos? Também esses homens, semelhantes ao animal, vivem au jour le jour, para o momento. Hoje acontece um incidente, amanhã outro. O cão um dia agita o rabo, outro dia se enraivece e ladra. Hoje vos lambe a mão, e amanhã morde. Mas, nesta sucessão de atos, não existe um nexo inteligente que una os diversos instantes da vida, de acordo com uma idéia ou com um fim determinado. E por isto, a vida, disse Shakespeare, se torna semelhante a uma historieta contada por um idiota: like a tale told by an idiot.

O charlatão é o símbolo mais perfeito da vida atomística. Ei-lo no meio da praça, a berrar: – “Senhores e senhoras: se quereis ter sorte, ouvi minhas palavras. Não sabeis que no planeta Marte existem canais e habitantes? E pensais acaso que os terremotos sejam um fenômeno que pode ser impunemente descuidado? Acreditai, senhores e senhoras: não há nada mais importante do que o cultivo da mamona e o emprego dos adubos químicos. Deixemos de lado os problemas do equilíbrio europeu e da paz mundial. Mas não vos parece, meus senhores, que os macróbios deveriam ser aproveitados para prefeitos dos territórios nacionais? O problema é sério e hoje em dia as estações de veraneio, como a moda feminina, deveriam ocupar a atenção nacional, para glória da pátria e prosperidade dos povos. E ademais, meus senhores, quem pode misturar na mesma refeição risota à milanesa, macarrão à napolitana, batata inglesa, feijão branco, abobrinha, pimentão com chuchu e uma garrafinha de Chianti, tudo em honra da Princesa dos Dólares?”

Estais rindo? Mil perdões. Mas. . . não seríeis também vós, por acaso charlatães? O charlatão é tal, não porque diga mentiras ou tolices, mas porque enuncia pensamentos desconexos. Falta sentido em suas expressões; não há unidade em suas palavras. E a vossa vida não estará também desprovida de nexo, em suas ações, como a arenga do charlatão?

As senhoras e moças que misturam a Missa, o flirt, o baile de beneficência, o reveillon do carnaval, a pregação do brilhante conferencista quaresmal, a moda de andar quase como Eva – revestidas unicamente de sua. . . inocência – e junto com tudo isto, talvez, a freqüência da Comunhão, que têm elas a invejar do charlatão?

Alguns operários que se levantam pela manhã resmungando orações e vão talvez assistir à primeira Missa e logo vão tragar um número bem respeitável de martelos da branquinha, acompanhando a libação de um discreto chorrilho de blasfêmias, e depois, nos dias de festa, vestem na Igreja a opa dos lrmãos do Santíssimo, ouvem o sermão, e a seguir, junto com os amigalhaços anti-clericais, ouvem outro sermão muito pouco parecido com o do Pároco, e acabam o dia numa soleníssima borracheira… esses que tais não se parecem com o charlatão?

Certas senhoritas de boa família, que freqüentam os Sacramentos, mas se entregam apaixonadamente à leitura de romances eróticos; certos jovens que pertencem aliás a ótimas associações, mas apesar de se proclamarem católicos, dissipam cretinamente a flor da mocidade e do espírito em vícios vergonhosos e nefandos, porventura não fazem concorrência ao charlatão?

Toda vida, sem a luz de um pensamento, sem o sopro unificador de um princípio inspirador, constituída de mil e mil ações, “semelhantes a bolhas que pululam de repente e se resolvem em nada” – essa vida não passa de uma vida atomística. Pode ser comparada a um cadáver de um náufrago batido pelo vai e vem das ondas, até dar às praias da morte; e não ao piloto que, no rugir da tempestade, sabe governar sua nau com mão firme no leme. Em resumo: a característica essencial de uma vida atomística é a falta de nexo, de unidade e de sentido. E assim como nunca dareis o nome de “livro” a algumas tolhas impressas, nas quais houvesse um amontoado de palavras sem sentido, assim não podemos considerar como “verdadeira vida” a que acabamos de descrever, e que desgraçadamente é a vida de um grande número de inconscientes.

2 . A vida organizada

A outra estrada é a percorrida pelos que vivem a sua vida organicamente, isto é, os que organizam a sua atividade de tal forma que, assim como as inúmeras letras e palavras de um livro constituem um só livro, do mesmo modo a variadíssima multiplicidade de suas ações vem constituir um todo único e coerente.

À primeira vista, vemos, nos que vivem organicamente, mais ou menos o mesmo que se observa nos que vivem atomisticamente. Mas há uma diferença essencial.

Também num jornal se trata de terremotos, de plantio da mamona, de política e de moda, nem faltam às vezes receitas para o cardápio do dia. Não obstante, que impressão tão diversa a de um jornal que apresenta tudo isso sob o aspecto particular de sua orientação e a tirada do charlatão de que falamos!

Quem deseja conseguir alguma coisa na vida, deve organizar-se a si mesmo. Só as pessoas enérgicas, os indivíduos de caráter, os que conseguem deixar um sulco de sua passagem no mundo e não se deixam arrastar, passivamente, pelos outros, os que não querem ser vagões de carga, mas sim locomotivas, só estes é que triunfam!

Alguns exemplos práticos, escrevia eu nos Primeiros rudimentos de pedagogia, ilustrarão este pensamento.

Um homem vive para os negócios e deles faz o seu centro de atividade. Não vive atomísticamente, mas organiza todos os seus atos em função de seus negó­cios, Passeia pela sala, olha, sorri, ora grita ou ri para alguém, toma apontamentos, escreve cartas; mas tudo isto está organizado tendo em vista o lucro. Entra um visitante, acolhe-o com toda afabilidade, vai tomar um café com ele, convida-o para almoçar, mas tudo isto com um fim determinado: um vantajoso contrato de compra ou venda. Vai ao teatro e fala em negócios. Lê os jornais e até se preocupa com as novidades da política, mas sempre em relação aos seus interesses. Vai dormir e pensa no aperfeiçoamento de uma máquina, na malandragem de um empregado, na aquisição de um bom técnico. Talvez chegue a dar uma esmola ao vigário, para as obras da Matriz, mas até isto tem um motivo. . . econômico. Enfim, organiza a sua vida sob o aspecto dos negócios.

Uma mulherzinha do povo organiza a sua vida; e seu centro de interesse será, por exemplo, o jogo de bicho. Ela também segue os acontecimentos políticos sociais, individuais; reza aos seus Santos, é capaz de jejuar e até se interessa pelos sonhos das comadres de bairro. Mas tudo ela refere à centena ou ao milhar do jogo de bicho. Diga-se o mesmo do artista, do político que aspira a chegar a Deputado ou a Ministro. O mesmo se diga da jovem que anda à caça de um maridinho e que não sossega enquanto não chega a abiscoitar um. Para isto se vale do vestido, do piano da conversa, do baile, das boas maneiras, do olhar sonhador, do sorriso meloso, das mentiras e briguinha e até das lágrimas; e tudo para chegar à realização de seu sonho. Diga-se o mesmo da boa mãe de família que quer dirigir a sua casa e educar os seus filhos e tudo encaminha para este fim, desde a súplica até ao castigo, do trabalho da cozinha ao passeio e ao descanso. Em uma palavra: quem se estabelece no campo do bem ou do mal, trate-se de um bandido, de um viciado cego pela paixão, ou de um Cottolengo e de um Dom Bosco, vive organicamente, possui uma idéia central que domina a sua existência, como um foco para o qual converge toda a luz e do qual irradiam todos os raios. E que outra coisa ensinam as obras de Smiles sobre o tema “Querer é poder” e as grandes fortunas dos milionários americanos e de qualquer self-mademan que criou sua própria vida e posição?


3 . As Três Organizações da Vida Possíveis

O caminho de uma vida organizada, tendo embora um único princípio inicial, se ramifica logo em três grandes vias, que é mister distinguir claramente e que não podem ser senão três.

Ensinam os filósofos que só se podem conceber estas três coisas:

a) o “não eu”, isto é, as coisas exteriores, a natureza e tudo o que não é o nosso “eu”, como as riquezas, a glória, etc.;

b) o “eu”, ou seja, o homem, sua vida íntima, ou melhor, sua vida interior;

c) “Deus”, que não pode ser confundido nem com a natureza, nem com o homem, nem com as coisas, nem com o sujeito, nem com o objeto.

Para isso, não é passivei nem sequer imaginar outros pontos centrais, outras orientações, fora das seguintes:

a) pode-se organizar a própria vida com um princípio exterior, vivendo du dehors, como dizem os franceses, isto é, do de fora;

b) pode-se organizar a própria vida com um princípio interno, vivendo du dedans, do de dentro, isto é, subordinando também as coisas externas às exigências de uma vida interior;

c) pode-se organizar a própria vida escolhendo a Deus como princípio unificador e a ele subordinando tanto nossa atividade externa, como nossa vida íntima.

Não é difícil compreender que os dois primeiros caminhos são insuficientes e que portanto é de sumo interesse examinar o terceiro.

1 – Antes de tudo, a vida vivida du dehors não basta. Prescindamos, muito embora, do fato das múltiplas falências e insucessos que sobrevêm, pois é sabido que nem todos os candidatos ao prêmio o alcançam e o conservam eternamente, nem todos os artistas conseguem produzir sempre obras primas, e assim por diante. Ao lado de um vencedor que celebra o seu triunfo, há muitos vencidos. Junto ao Capitólio está a rocha Tarpéia! . . . Nem sempre se pode o que se quer. Até mesmo as vontades mais férreas e tenazes, amiúde se quebram contra a dura realidade. É sempre perigoso limitar-se a organizar a vida sob este ponto de vista das coisas externas!

Há coisa pior. Ainda na hipótese benigna de um êxito sem contradição e incontestável, sem perigo de quedas, o coração humano nunca está satisfeito. O que já subiu a um píncaro quer escalar outro mais elevado. Nas corridas ciclísticas ou automobilísticas, nunca se diz basta no que se refere à velocidade; quem já devorou tantos quilômetros por hora, quer bater outro recorde na próxima ocasião. Assim também acontece na vertiginosa corrida das riquezas, da glória e do prazer; ninguém se dá por satisfeito. Quanto mais se alcança, tanto mais cresce a ânsia que leva a prosseguir para a frente. E, às vezes, é mais forte o descontentamento, maior o desgosto, a sensação da inanidade das coisas.

Quem tem experiência da vida e não se deixa levianamente embalar por utopias fantasistas, bem conhece “Da carne imunda a atroz tristeza e pejo, Quando, no gelo do desgosto, extingue-se A chama do desejo …”

A luta pela vida, isto é, a conquista da fortuna e do êxito, como aparece a quem já triunfou? Blondel responde com exatidão: “Dois cães que lutam por um montão de lixo, no qual nada encontra o vencedor. E desiludidos assim, não são somente os que envelhecem e morrem no encanto das bagatelas, sem nunca haver penetrado além da superfície de seus sentidos, mas os melhores, os mais experimentados, os mais competentes, os homens de ação triunfante e de pensamento ardente.”

Ainda que se julgassem muito carregadas estas cores, a respeito das quais existe, entretanto, um acordo tão eloqüente; ainda que se pretenda admitir que uma pessoa goze e seja feliz em seu triunfo exterior, existe sempre uma sombra terrível e funesta que perturba, envenena e mata todo o gozo: a sombra da morte.

Ninguém melhor do que o Pe. Gratry, no seu livro “Souvenirs de ma jeunesse”, descreveu o estado de ânimo de quem, vivendo du dehors, olha de frente a terrível megera, a Morte.

Era jovem, cheio de saúde, de confiança e de alegria. Acabadas as férias, numa tarde de outono, Gratry voltou para o colégio. Sentado à beira da cama, entregou-se a deliciosas reflexões sobre o ano escolar que ia começar e, de repente, iniciou em seu interior este solilóquio:

“Eis-me no segundo ano de retórica. Sou o primeiro da classe e do colégio, e quiçá o primeiro dentre os estudantes de Paris. Alcançarei o prêmio de honra? Porventura não poderei ganhar todos os prêmios no concurso geral? Todos é difícil; mas três ou quatro, sim, é muito possível. No próximo ano conquistarei provavelmente o prêmio de honra em Filosofia. Depois iniciarei o curso de Direito. Serei o primeiro dentre os estudantes de Direito? Possuirei tanta ou maior ciência e engenho do que os outros? E por que não? Já verifiquei: os homens trabalham pouco; pouquíssimos têm vontade, perseverança e energia. Reina uma moleza, uma atonia geral. Por conseguinte, vencerei, se eu quiser, à força de ardor, de trabalho e tenacidade. Aprenderei a falar e escrever… serei advogado, um excelente advogado. . . Conquistarei uma bela posição e uma grande fortuna. Mas uma profissão não basta. É necessário algo melhor e maior. É preciso fazer alguma coisa de belo. Escreverei uma obra. Sim! mas a que nível literário me elevará esta obra? Chegarei à Academia Francesa? Não há dúvida. . . E a que grau de glória? Será como Laharpe ou Casimiro Delavigne? Não estaria mal… mas ainda não basta. Serei como Voltaire, Rousseau, Racine, Corneille, Pascal? Oh! isto seria talvez ambicionar muito! Eis aqui, diante de mim, um formoso porvir! Que fortuna! Coragem e valor! … Meu pai, minha mãe e minha irmã serão felizes. Terei amigos. Comprarei uma casa de campo perto de Paris. Casar-me-ei. Oh! como saberei escolher! Como hei de amar!”

O sonho era encantador. Sonhava com pessoas, coisas, acontecimentos e lugares. Via o seu castelo, os amigos, a família, a bela e admirável companheira da sua vida, os filhos, as alegrias, as festas, a felicidade íntima no convívio com os seus.

“Toda a felicidade possível na terra se havia concentrado lá. Mas tal contemplação progredia. Tudo caminhava de bem para melhor. E eu, continua ele, dizia sempre: “Mais! mais ainda! e depois? e depois?” Destarte, não podia deixar de verificar que, em tal época de minha felicidade, teria eu tal idade. E comecei a pensar que meu pai já teria morrido… Minha mãe lhe sobreviveria. Mas talvez não mais de uns dez anos. E se minha irmã morresse antes de mim! E se fulano e sicrano morressem! Se eu perdesse minha esposa!. . . Têm-se visto homens que sobreviveram a toda a família e aos seus próprios filhos!. . . Oh! que cousa horrível deve ser! O sol esplendoroso que momentos antes dourava minha imaginação, começava a brilhar com luz muito diferente. Uma grande nuvem escura passou diante do sol. Tudo empalidecia e fui obrigado a exclamar: Depois de tudo isto, também eu morrerei! Chegará o momento em que estarei estendido em um leito, me debaterei com a morte e morrerei e tudo estará acabado . . . Não mais o sol, nem os homens! Ninguém. . . nada!. . . Eis aí, pois, a vida! Todos nascem e morrem desta forma. Assim aconteceu desde o princípio do mundo e assim acontecerá sempre. As gerações se sucedem rapidamente, e passam. . . Cada um vive um instante e desaparece. É horrível!. . . E via estas gerações passarem e desaparecerem, como rebanhos inconscientes tangidos para o matadouro, ou como as ondas de um rio que se aproximam de um abismo, onde todas se precipitam por sua vez, para ficarem debaixo da terra e não verem mais o sol. Nesse rio via ondas pequenas que surgiam e se encrespavam um instante e num abrir e fechar de olhos refletiam um raio de sol, para se submergirem logo na corrente. Essa pequena onda sou eu. As que seguem, os seres que eu amei; mas tudo se afundou no abismo! Àquela visão, fiquei imóvel e como paralisado de terror e de espanto.”

Então Gratry entrou em si mesmo e invocou o Deus de seus primeiros anos, de quem se esquecera. Se alguém lhe houvesse sussurrado ao ouvido: “É suficiente organizar a vida du dehors“, Gratry se teria compadecido dele e lhe teria apontado a morte que corta toda esperança, toda flor e todo sonho.

Contudo, há muitas almas fortes e briosas, mas não crentes, que escolheram outro caminho e se esforçam por se organizarem a si mesmas do ponto de vista do seu “eu”.

Se o nosso pequeno “eu” pode certamente parecer infinitamente pequeno, contudo, observa Pascal, sente a sua superioridade perante esse infinitamente grande, que é o universo material. E fazer de si mesmo o centro de tudo; não se deixar dominar pelos esplendores externos, mas dominá-los; querer conservar-se firme, como Marco Aurélio, em face das vicissitudes, como um promontório, contra o qual incessantemente se quebram as ondas; ser superior, em nome do “gênio interno”, ao prazer e às dores, para terminar um dia a vida – é sempre o autor de “Souvenirs” quem fala – “como azeitona madura que cai bendizendo a terra que a sustentou e a planta que a gerou”, pode parecer uma visão e um programa fascinador à primeira vista, para um espírito nobre e elevado.

Mas também este esforço de organização interior não basta. Nós não somos o Absoluto; não somos o firme “promontório”. O pequeno “eu” humano é fraco, inconstante e anda muita vez mergulhado nas trevas. E embora afirmando-se a si mesmo, não só é sacudido pela onda amarga da desilusão, mas sente também a sua fragilidade e insuficiência. Depois de longos anos de luta, só pode repetir a desconsoladora frase de um positivista, Roberto Ardigó, que, ao degolar-se com uma navalha, murmurava: “Para que serve a vida?” A tristeza – reconheceu-o o próprio Caetano Negri – se infiltra em cada observação, em cada palavra de Marco Aurélio e, acrescentamos nós, de todo estóico antigo e moderno: é a tristeza que “envolve na monotonia de um mesmo véu cor de cinza, o mundo inteiro, também nas suas mais variadas e formosas manifestações”. Nunca, tanto como hoje, se pretendeu fazer do homem um Deus, que legisla para si mesmo. Entretanto, nunca como hoje o homem aparece qual ídolo falso e mentiroso, num pedestal oscilante, ostentando, no meio da sua auto-glorificação, toda a sua miséria.

3 – Eis porque Santo Agostinho, com uma expressão profunda, por muitos repetida, mas por poucos compreendida, escreveu: “Homem, não saias fora de ti – noli foras ire; entra em ti mesmo – in te ipsum redi; e achando-te sujeito à mudança e à relatividade, transcende a ti mesmo – transcende te ipsum, organiza a tua vida tomando a Deus como centro.

É exatamente esta a tarefa da religião: Cada um é mais ou menos religioso, na medida com que organiza toda a sua existência, toda a sua atividade, sob o ponto de vista de Deus, ao qual se subordinam as coisas materiais e o próprio “eu”.

Não basta ter o nome registrado nos livros dos batizados para ser verdadeiro crente. A religião é uma solução do problema da vida, e uma solução completa que não descuida nem o menor gesto, nem o menor ato, nem o menor instante da nossa atividade. A conversão verdadeira e sincera significa uma revolução na própria vida, uma organização da vida do ponto de vista de Deus. E todo este volume não será outra coisa senão uma explicação, um esclarecimento de semelhante solução: veremos de que maneira o cristão organiza a sua vida e procuraremos saber como ele, diferentemente dos outros homens, deve resolver o seu problema.

Se alguém, ao percorrer estas páginas, sente o coração agitado, é porque até agora dissipou os seus anos colhendo frutos de tédio, de asco e de remorso. Se o perturba o pensamento do futuro, da morte inexorável que a todos nos espera e para a qual corremos a passos largos; se sente o desejo de viver, de viver uma vida digna deste nome, evoque as esplêndidas páginas de Manzoni, quando descreve a noite do “Inominado”.

Uma espécie de terror, uma espécie de raiva, de arrependimento, a imagem viva de Lúcia na mente, e as palavras que ainda lhe ressoavam ao ouvido, o atormentavam, o exasperavam e o perseguiam.

“A que estou eu reduzido! – exclamava. Já não sou homem, não sou homem! Vamos! – disse depois, revolvendo-se furioso na cama, que parecia dura, muito dura, debaixo de cobertas que pesavam como se fossem de chumbo – Vamos! são tolices, que já outras vezes me perturbaram a cabeça. Passará também esta”.

Vã esperança! Desfilavam pela sua fantasia façanhas e salteadores e “achou-se engolfado no exame de toda a sua vida. Retrocedendo muito, analisando ano por ano, de atentado em atentado, de sangue em sangue, de crime em crime, cada caso se apresentava diante de sua alma consciente e renovada, liberta dos sentimentos que a levaram a praticar tais crimes! Cada caso aparecia acompanhado de uma grande monstruosidade, que aqueles sentimentos não lhe deixavam até então ver. Eram todas obras suas. Era a sua vida, era ele próprio! O horror desse pensamento, que renascia a cada uma daquelas imagens e estava ligado a todas, cresceu até o desespero. Sentou-se furiosamente, raivosamente estendeu os braços, agarrou uma pistola, e… no momento em que ia dar cabo de uma vida que se tornara insuportável, o seu pensamento, surpreendido por um terror, por uma inquietação, por assim dizer, sobrevivente, pôs-se a meditar àcêrca do que aconteceria depois da sua morte. Imaginava com espanto o seu cadáver deforme, imóvel, em poder do mais vil indivíduo. A surpresa e a confusão no castelo, no dia seguinte. Tudo em reboliço, e ele inerte e sem voz, atirado a um canto como um trapo! Imaginava as conversas e comentários, que se fariam em casa, nos arredores, mais longe, a alegria dos seus inimigos. . . E absorto nestas terríveis considerações, convulsivamente, ia erguendo e abaixando com o polegar o gatilho da pistola, quando outra idéia lhe atravessou a mente:

– Se essa outra vida, da qual lhe falaram quando criança, da qual sempre falam como se fosse coisa certa, se essa vida não existisse, se é uma invenção dos padres, que faço eu? Para que morrer? Que importa o que fiz? É uma loucura matar-me. E se existe essa outra vida!… Perante esta dúvida, em face de tal perigo, eis que se apodera dele um desespero maior, mais negro, mais grave, e do qual não se poderia escapar nem com a morte. Deixou cair a arma, pôs as mãos nos cabelos, batendo os dentes, todo a tremer… E eis que, ao despontar da madrugada, percebeu que lhe chegava aos ouvidos uma onda de longínquos sons confusos, mas com uma expressão de alegria. Pôs-se a escutar atentamente, e reconheceu o repique festivo de campanários distantes. . . Saltou daquele leito que parecia de espinhos e, meio vestido, correu a abrir uma janela”. . . Havia chegado àquele lugar o bom Pastor, que aguardava a ovelha desgarrada.

Também hoje, como outrora, a religião faz chegar a todos, cuja vida se resolve entre espessas e agitadas trevas, o convite de seus campanários: “Passou a noite; despontou o belo dia. Abri as janelas! Olhai! Segui a voz de Deus que vos chama e vos espera”

RECAPITULAÇÃO

Todos os homens, mesmo sem pensar nisto, resolvem o problema da sua vida, porque não se pode viver senão de um ou de outro modo.

As soluções do problema podem-se reduzir a duas:

1. Existe a solução atomistica, isto é, a vida desorganizada dos que não coordenam nem dirigem os seus atos segundo um único princípio informador.

2. Existe a solução orgânica, a saber, a vida organizada conforme um princípio determinado.

No segundo caso, ao organizar a própria vida, é possível tomar três caminhos, isto é:

a) pode-se organizar a vida segundo um princípio exterior, tomando como centro as honras, as riquezas, os prazeres, isto é, o objeto;

b) pode-se organizar a vida segundo um princípio interior, tomando como centro o próprio “eu”, isto é, o sujeito;

c) pode-se organizar a vida segundo um princípio divino, tomando como centro a Deus. Os dois primeiros caminhos estão errados. Devemos seguir o terceiro. Por isto, a atual ignorância religiosa constitui um crime: não conhecer a fundo o Cristianismo significa estar na impossibilidade de resolver o problema da vida.

Qual é então a solução cristã deste problema? Antes de enunciá-la, é necessário expor algumas noções a respeito da ordem natural e da ordem sobrenatural.

(Continua…)

As Verdades Básicas do Cristianismo, Mons. Francisco olgiati, Reitor da Universidade de Milão. Tradução direta da 2ª Edição Italiana pelo P. Luiz Marcigaglia S. S., 1942.

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